segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

agitando a bengala

Encontrei uma delicada peça de origami, com forma de cisne, a flutuar numa fonte pública. Quando me aproximei, reparei que a folha tinha uma inscrição curiosa: rainha para f3. Quando acabei de ler, o cisne em papel levantou voo, disparatadamente, e eu segui-o pela rua fora até ele aterrar na cabeça de um velhote, que não se apercebeu que tinha uma peça de origami na cabeça. Ou assim me parecera. Uns segundos depois, o homem desata aos berros pela rua fora, agitando a bengala: "torre para e2!" O cisne esvoaçou para cima da cabeça de uma peixeira clandestina, que agarrou num peixe pelas guelras e exclamou, triunfante: "rainha para b4. Xeque-mate!" A peixeira fez uma dança russa, com uma agilidade impressionante, mas caiu no chão, no preciso momento em que o cisne voou da sua cabeça, para pousar numa poça de lama. Eu observei de perto, e reparei que agora tinha uma inscrição diferente, em russo, que eu traduzi: "Cuidado, Sergei, que estes portugueses são malucos. Espera lá... Já estás a transmitir?" Então peguei no cisne, agitei-o e reparei que era uma notável peça de tecnologia psicotrónica. Trouxe-a para casa e pendurei-a na árvore de Natal, que, desde então me dá notícias diárias de espionagem russa. Decidi publicar os nomes dos agentes num site de revivalismo dos anos 80, e parece-me que ninguém levou a sério o meu trabalho. Deve ser por ter revelado a minha fonte.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

o mistério do arco-íris torto


Eu passeava na rua de Cedofeita. Na ausência de distracções mais cativantes, decidi escutar atentamente os fragmentos de conversa das pessoas por quem passava. Pelo conteúdo das conversas, tive boas razões para me alarmar, mas mantive a calma.
O primeiro grupo foram dois jovens, um rapaz com dread locks e brincos, de mãos dadas com uma gótica vistosa. Ela disse-lhe: «Então o céu abriu-se e caiu de lá um telefone....» A seguir, estavam três polícias em frente à esquadra de Cedofeita, e um, gesticulando, começa a exclamar: «Quando eu finalmente atendi a maldita chamada, o chefe disse que recolhesse as nuvens...» Logo depois, vejo um homem de boné a descrever uma curvatura com o braço, dizendo «...porque o arco-íris estava torto...» Mas o mais estranho foi ouvir uma freira a murmurar para a outra: «A Criação comprometida...» E a seguir ouço as palavras, vindas de dentro da Óptica de Cedofeita: «...por um erro de refracção...» Ao longe, vejo uma mulher a barafustar ao telefone, com o dedo no ar: «Ninguém pode saber! Quem souber...» E, parado junto a uma porta, estava um homem a apontar com o dedo para a planta de uma casa: «Tem de ser eliminado.»
Habitualmente, os fragmentos que apanhamos na rua são desconexos. Mas estes comportavam uma mensagem muito consistente: «O céu abriu-se. Caiu de lá um telefone e, quando eu atendi a maldita chamada, o chefe disse-me que recolhesse as nuvens, porque o arco-íris estava torto. A Criação comprometida por um erro de refracção! Ninguém pode saber! Quem souber tem de ser eliminado.»
Eu desesperei. Fui para casa e, qual o meu espanto, quando vejo ursinhos carinhosos a escorregar por um arco-íris através da minha janela do quarto. «Vieram matar-me!», pensei, em pânico absoluto. Fugi para dentro do quarto de banho, tranquei a porta e esperei. O que é que eu podia fazer? Foi então que me lembrei que só Newton me podia salvar. Rezei pela sua aparição, mas, desgraçadamente, apareceu-me Leibniz. «Se não me esperavas, não falasses no criador do cálculo infinitesimal!» Tive de aturar o Leibniz e suas Mónadas até ter uma ideia. Peguei nas Mónadas de Leibniz, ensaboei-as e atirei-as todas aos ursinhos, que escorregaram nelas e se espatifaram no chão. Então eu fugi da Brigada do Arco-Íris e encontrei um telefone a tocar, pendurado no ramo de uma árvore. Atendi e uma voz disse: «Come muito queijo!» Assim fiz. Fiz de conta que, graças à aplicação da duvidosa sabedoria popular, me esqueci de todo o episódio. Mas, quando eles souberem que ainda me lembro de tudo, terei mais ursinhos carinhosos a tentar matar-me, sem a salvação de Newton, para explicar que o mistério do arco-íris torto não é um erro da Criação.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Não se incomode com as migalhas


Há uns dias atrás, encontrei o senhor Rafael Borges a recolher migalhas, da sua mesa do café, para dentro de uma caixa de tabaco. Eu sabia que ele não era assim tão necessitado que precisasse de juntar migalhas. Depois de ter colhido as migalhas, alçou a perna e deu corda ao relógio de bolso. Olhou para o céu através do vidro e suspirou. Eu não me atrevi a ir ter com ele. Mas, quando ele se foi embora, o dono do café atirou com o pano para cima do balcão e exclamou:
«Ai a minha vida! Agora tenho de ter cuidado ao cortar o pão, para que Sua Excelência não se incomode com as migalhas!»
Eu vim a saber que o senhor Borges tinha, nos últimos tempos, desenvolvido uma relação estranha com migalhas. «Anda a amigalhar migalhas num migalheiro sem dinheiro», troçou uma velhota que estava no café. Eu decidi investigar.
Ao segui-lo até casa, reparei que ele deixava migalhas pelo caminho. Como Hansel e Gretel. Mas mais estranho do que isso: os pedaços de pão estavam marcados com combinações alfanuméricas que ele ia escrevendo neles. A primeira era 355.4, a segunda era 4qu314, e a terceira era 0u7r4. Quando chegou ao prédio onde morava, deixou uma migalha com a seguinte inscrição: 536u3.m3. Eu achei que, obviamente, tinha de continuar. Então entrei no prédio. O ar do átrio de entrada cheirava a maçãs podres e ouvia-se um eco de tiquetaque de relógios antigos. Não consegui entrar no elevador com o senhor Borges, mas quando entrei nele a seguir, reparei que o interior era branco e almofadado como algumas celas dos manicómios, com uma placa dizendo: «Ecce Signum Salutis, Salus in Periculis».
Quando a porta do elevador se abriu, no andar 29, segui as migalhas até ao apartamento D-K que, por sinal, estava inacabado. Havia, por todo o lado, gaiolas de pássaros. Mas estas não tinham pássaros, apenas migalhas. O senhor Borges pegou numa gaiola dessas e entrou noutro elevador. Este segundo elevador também era almofadado, mas de tecido vermelho. Quando entrei, atrás dele, constatei que as paredes do elevador se revolviam e uma substância viscosa descia do topo.
Já na rua, encontrei o homem a segurar uma gaiola com um pássaro vivo lá dentro. Não percebi.
Cheguei a casa e pensei na bizarraria do assunto. Coloquei sobre a mesa um livro com fragmentos dos pré-socráticos, e abri a página 355, capítulo 4. Encontrei um filósofo que não conhecia: o Cereanto de Mileto. O fragmento 29 D-K dizia:

(…) Eleva-se para o céu e desce para a terra. É a ave, que primeiro é pão e depois é ave. Mas nenhuma transição se opera sem a presença de forças. Por isso o pão é digerido antes de ser ave, e a ave é digerida antes de ser homem. E o homem é digerido antes de (…)

E termina aí o fragmento, que parecia dizer que as migalhas tinham sido digeridas no elevador, e aí passaram a ser um pássaro. Eu, por acaso, comi frango ao almoço. E o homem, passa a ser o quê? Olhei-me no espelho e percebi: o homem não se digere em mais nenhum ser. Não, não é por estar no topo da cadeia alimentar. É porque foi ele inventou o elevador, com um botão para o andar 29, cujo D-K, por sinal, estava inacabado.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

espirrava na série de Fibonacci

Dois velhotes que estavam a jogar cartas num banco da praça Carlos Alberto, ficaram a olhar para mim, quando eu agarrei num cão e lhe perguntei se ele sabia código morse.

Eles não sabiam que foi com uma boa razão que eu o fiz. No fim da minha rua costuma estar um cão sem cauda. É branco às pintas e gosta de atravessar de um lado para o outro da passadeira. Também tem outro hábito intrigante: por vezes, encontro-o, imóvel, a olhar para o vidro do talho. Reparei, no entanto, que não é por gula da carne que ali se encontra exposta. Cheguei à conclusão errada que era porque contemplava o seu reflexo, perplexo de estupidez. "Estupidez", pensei eu. E pensei mal. Um dia, decidi seguir o cão pela rua fora e vi-o a dar voltas e a sentar-se aproximadamente de dez em dez metros. "Que cão estúpido!", julguei eu, antes de perceber que ele dava voltas em sequências de números primos. Logo que percebi a sequência, prestei mais atenção, e percebi também que ele espirrava uma vez, depois outra vez, depois duas vezes seguidas, depois três, cinco, oito. Sim, claro, espirrava na série de Fibonacci. De repente, o cão começou a ladrar histericamente e eu reparei que era, provavelmente, por ter passado por outro talho. Pôs-se a olhar fixamente para dentro, através do vidro. Se não fosse um cão, eu diria que tinha uma expressão de choque e consternação, e não de gula. Depois, inquieto, contemplava o reflexo justaposto e cheirava o vidro desesperadamente. No entanto, algo de incrível sucedeu quando chegámos à praça Carlos Alberto. Ele começa a arrancar, com a boca, as pedras da calçada do meio da praça. Quando percebi que ele as tinha arrancado num padrão de pentagrama, fui ter com o cão e perguntei-lhe se sabia código morse. Ele imediatamente ladrou, em código morse: «Socorro, sou Pitágoras».

Eu fui para casa a meditar no meu risco em acreditar, como os pitagóricos, na transmigração das almas. Passei por uma livraria religiosa de Cedofeita, que tinha na montra um livro de auto-ajuda com o título "Acredite, e acontecerá!" Comprei o livro, com a intenção exclusiva de não acreditar na sua premissa principal. A partir daí, achei que podia continuar a acreditar na trasmigração das almas, sem risco de ir parar à montra de um talho qualquer numa vida futura, tragicamente contemplada por um cão genial.

sábado, 15 de setembro de 2012

as ameixas e os ratos

Há uns tempos eu estava a usar a consola do Linux e, por preguiça, queria desligá-la sem usar o rato. Podia ter feito Alt+F4, mas decidi dar uma ordem à consola e digitar "exit", só que saiu-me "exist". Esse comando deve ter mudado a interpretação que o universo fez do facto "há um rato em cima da mesa, ao lado do teclado". Quando me apercebi de que estava um rato branco em cima da mesa, fiz-lhe festinhas e ele fugiu. Mas o problema do rato não se ficou por aí.
Na semana passada tomei uma ameixa por um rato. Tinha caído de uma árvore próxima e descia, aos saltos, uma pequena rua inclinada do Roçaio, na Serra da Lousã. Na mesma noite, tive a impressão de ver ameixas a adejar como morcegos sobre um arvoredo mal iluminado de Gondramaz. Aproximei-me do lugar, e uma das árvores era uma ameixeira que, por sinal, chiava tremendamente. Para apanhar um dos frutos, rebentei um ramo e, quando me dei conta do achado, tinha um rato arcaico (dos de bolinha, PS/2) na mão, daqueles que não são comestíveis como as ameixas são.
Nessa noite, acordei para ir beber água, e vi uma ameixa a esgravatar na parede ao lado da lareira. Peguei nela com cuidado e pu-la fora de casa. Ao regressar ao meu quarto, vi uma fila de ameixas a rolar rapidamente num canto da casa. Apareceram, entretanto, algumas portas de USB junto ao chão. Eu comecei a suspeitar que as ameixas e os ratos tinham algum tipo de afinidade transcendente.
Anteontem voltei a Lisboa, e vi novamente aquela velhinha a quem chamavam "a bruxa do Chiado". Dizia-se que é porque cozinhava ratos arcaicos que chiavam muito (dos de bolinha, PS/2). Mas a verdade é que a velhinha costumava andar naquela zona com um carro de compras que chiava desalmadamente. Desta vez vi cair uma ameixa verde do seu carrinho e abordei-a. "Minha senhora", comecei, "deixou cair isto". A velhinha virou-se para mim, com um ar altivo e ligeiramente ofendido e retorquiu: "Muito obrigada, mas acha mesmo que preciso de ameixas para fazer compota de rato?" Quando cheguei ao quarto do hotel, vi o meu portátil com um rato óptico a piscar ao lado direito. O mundo tinha voltado à normalidade. Ou quase: do lado de baixo do rato podia ler-se: "Plumjuice Corporation - Tested to comply with FCC Standards. For home or office use. Do not feed. Do not water. Made in China".

sábado, 8 de setembro de 2012

O Fotopteróide Radiobiónico

O Francisco Gonçalves revelou-me, há dois meses, o seu desejo de arranjar um animal de estimação. Eu sugeri um cão.
“Nem pensar!”, exclamou. “Um cão come e faz chichi.”
“Então tu queres um tamagotchi?
“Não. Os tamagotchis têm baixa resolução.”

Como não falámos mais sobre isso, eu presumi que ele tivesse desistido. Anteontem, recebi um email invulgar com um anexo, “fotopteroide.jpg”. Era o desenho do seu projecto prometeico, com legenda anatómica. No texto do email podia ler-se:

«Tenho vindo a trabalhar num projecto que me absorve intensamente. Decerto te lembras de eu ter dito que os tamagotchis têm baixa resolução. Para ser sincero, eu gostava de ter uma avestruz, mas esta ave é agressiva, além de ter de comer e fazer as necessidades. Ontem, eu percebi que os meus esforços haviam sido recompensados. O Fotopteróide Radiobiónico vive!»



Fui imediatamente a casa do Francisco, pois o conteúdo do email preocupava-me.

- Não tenho amigos, Margaret - começou por me dizer. - Quando eu irradio o entusiasmo do sucesso, não há ninguém com quem compartilhar a minha alegria.
- Não me chamo Margaret, Francisco.
- Na minha alma labora algo que eu não compreendo...

Receando que ele continuasse a citar o Frankeinstein, algo que não me surpreendia dada a sua boa memória, interrompi-o e perguntei-lhe se podia colocar gelo no whisky que ele me dera. Dirigi-me à cozinha.

- Desculpa, Francisco, mas em qual das arcas está o gelo?

Havia três arcas frigoríficas. Abri-as, uma a uma, e pude constatar que aquela colecção de entranhas era de uma avestruz, pois achei a cabeça no final. Fiquei preocupado e corri para a sala.

- Criei um monstro. Vem comigo. - disse ele. A sua oficina estava desarrumada e suja, mas não foi isso que me surpreendeu. Ali estava ele, o Fotopteróide, a dançar. Não pude deixar de comentar:
 - Por que raios é que puseste uma televisão vintage no lugar da cabeça da criatura?
 -  Ela tem gânglios cerebrais dentro das pseudovértebras, não te preocupes. O fotopteróide é alimentado por energia solar, dissipa 7% sob a forma de calor que emana sob as células voltaicas; o cooler é interior. Tem entrada alternativa para AC na cauda para actividade nocturna ou dias de nevoeiro. As vértebras são frontais e integram um sistema de transmissão de sinais nervosos conjugado com as antenas de rádio, que são a principal fonte de input sensorial, juntamente com o dispositivo de detecção óptica, um olho biónico cujo sinal é processado directamente na cápsula e transmitido à unidade de monitorização, que alterna entre o display de sinal rádio e o sinal óptico... e que cobre uma extensão do espectro electromagnético mais ampla do que o olho humano. Vai, por isso, desde os raios-x até às microondas. Só não detecta radiação gama que, infelizmente, é letal para este animal. Não come nem faz chichi, o que é uma vantagem considerável.

Aproximei-me da criatura, e ouvi subitamente um assobio de radar. O Francisco disse-me ao ouvido: “Ele não sabe, mas vou desligá-lo. Decidi que prefiro um tamagotchi.” Fui para a sala e comecei a ouvir, vinda de lá de dentro, uma música pouco consistente com os gostos eruditos do Francisco:

Daisy, Daisy, give me your answer, do...

quinta-feira, 19 de julho de 2012

que mudem de clave

Foi desde que o meu antigo professor de música, Carlos Faisão, foi eleito presidente da câmara, que se instalou a confusão na gestão das propriedades das zonas mais rurais do Município. Fez-se tudo para obedecer ao decreto de que não podiam existir quintas paralelas. Em consequência disso, houve quem fraccionasse as suas quintas. Um velho amigo do presidente, o vereador Avelino Silva, tinha sido professor de geometria e matemática aplicada e argumentava que as quintas estritamente paralelas se encontravam no infinito virtual, opticamente sugerido no ponto de fuga. Quando ouviu a palavra “fuga”, o professor Carlos Faisão ficou estarrecido. “Nem pensar!”, e continuou “Parece-lhe mesmo que há verbas para fiscalizar a obediência às regras do contraponto?” Com efeito, não havia. Foram criadas multas para as quintas diminutas, o que fez muita gente vender as suas, e a aglomeração destas aumentou o número de quintas aumentadas, o que não resolveu a dissonância. Foram tomadas as providências mínimas para que o assunto se resolvesse em breve. Mas o professor Faisão continuou a levantar obstáculos, declarando que a resolução devia ser numa mínima, e não numa breve. Logo, teria de ser quatro vezes mais rápida. O vereador virou-se para o presidente:
- Um quarto é suficiente para a resolução.
- Diga-me lá uma coisa - começou o presidente - Acha mesmo que temos uma orquestra de câmara? Não quero um quarto. Preciso, na verdade, de um auditório, e o da Câmara serve, desde que se retirem os ninhos de pombas. Consta que trazem pulgas.
- Espere... se um quarto não é suficiente, digamos, algo de semelhante poderá sê-lo. Dois oitavos.
- Eu ouvi bem? - inquiriu o presidente ajeitando a corneta no ouvido. - Duas oitavas? Tem amplitude mais do que suficiente. Mas para mim uma quinta perfeita chegava.
- Não temos quintas perfeitas desde que as quintas paralelas foram banidas... e há outro problema.
- Qual é?
- Uma praga de centopeias, desde que as semifusas foram legalizadas.
- Olhe, vou fazer uma pausa. Resolva isso rapidamente e tome esta batuta...
- Perdão, mas isto é... uma batata.
- Quer discutir fonética ou resolver uma crise?
- Resolver uma crise. Tem razão, tem razão. Uma outra coisa: tem havido algum alvoroço nas estações de metro da linha F desde que se introduziram linhas suplementares.
- Ora, que mudem de clave e já não precisam dessas linhas.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

parquímetros de uma rua próxima

Na medida do meu ócio, tenho seguido a actividade relacionada com parquímetros de uma rua próxima daqui. De vez em quando vejo o senhor Aquiles: um velho mendigo, famoso por enfiar as mãos nas caixas de correio e gritar por socorro. Nada nem ninguém quer comer as mãos do senhor Aquiles, mas ele continua a fazer aquela cena. Como os tempos estão difíceis, tenho visto este homem a meter a mão no dispensador de trocos dos parquímetros. Uma vez vi-o a berrar ao tirar a mão do parquímetro com uma tartaruga pendurada no dedo. As tartarugas mordem, toda a gente sabe. Mas nem toda a gente sabe que há tartarugas nos parquímetros desta rua. Então eu quis perceber melhor estas ocorrências, e soube que tinham origem nas "corridas paradas" da rua Álvares Cabral. Aparentemente, uma sociedade chamada "O Clube da Lesma", que havia começado por apostar em corridas de lesmas e caracóis, havia criado o seguinte passatempo: cada membro tinha uma tartaruga identificada por um número, e colocava a tartaruga no sítio dos trocos do parquímetro. No final, pesavam as tartarugas. Quanto mais pesadas, mais moedas elas tinham comido. Esperava-se que o vencedor ganhasse quatrocentos euros da aposta mais uns dezasseis euros que a tartaruga teria comido. Para se saber de antemão qual era o valor exacto, fez-se uma radiografia à tartaruga e o resultado foi surpreendente: o pequeno réptil não tinha comido moedas, mas anéis de curso e falanges. Eu gostava de saber quais foram os licenciados em Farmácia que ficaram sem os dedos anelares. Eu sinceramente pensava que as tartarugas domésticas se alimentavam de pequenos camarões secos.

sábado, 30 de junho de 2012

uma luxuosa edição bilingue da Divina Comédia

Eu tive de ir até ao Estádio do Dragão de metro, e a carruagem estava praticamente vazia. De repente, ouvi uma música arranhada que me fazia lembrar os discos antigos do cãozinho que diziam "His Master's Voice" e que a minha avó punha na grafonola enquanto segurava na agulha. Percebi, então, que alguém estava a ouvir uma ópera de Wagner muito alto com headphones. Voltei-me para trás e vi um "guna" da pesada com boné ao lado, sapatilhas desapertadas e correntes douradas por cima de uma camisa foleira. Estava absorto na música de Wagner e agitava as mãos e a cabeça com verdadeiro entusiasmo. Reparei que, ao lado dele, estava sentado um rufia com rabichinho na nuca e brincos, ostentando uma t-shirt onde se podia ler um palavrão em esperanto. Estava a ler atentamente o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. Como percebeu que eu estava a olhar para ele, levantou o queixo, abordando-me de modo brusco e pouco cortês: "Tás a olhar?!" - e continuou a ler. Quando o metro parou no Campo 24 de Agosto, entrou um grupo de raparigas adolescentes, e com elas entraram os seus risinhos e o cheiro a pastilha elástica. Duas delas mexiam no telemóvel. De repente ouço, muito alto: "Toma lá! Rainha para e4!" As outras estavam a falar de um "gajo giro" que eu acabei por perceber que morreu durante um surto de cólera em Berlim, há cerca de 180 anos. "A dialéctica do Espírito culmina obviamente no Estado Prussiano", diz uma, ao que a outra continua "felizmente, o Estado Prussiano morreu de cólera" - e riem-se. "Não é bem assim", diz outra. Mas, subitamente, a que estava a jogar xadrez no telemóvel grita "Xeque-mate!" O metro pára e entra um homem com mau aspecto, a barba hirsuta, a roupa suja, as unhas negras e um cheiro insuportável a vinho. De repente, tira do saco uma luxuosa edição bilingue da "Divina Comédia" e começa a tirar notas num caderno com uma caneta de tinta permanente. Eu saí na última paragem, que é a do Estádio do Dragão, mas eles não saíam do metro. Fiquei intrigada, porque o destino daquele veículo era aquela paragem. Então eu voltei a entrar e perguntei a alguém "é a última paragem deste comboio, não é?" e responderam-me: "Teoricamente". "E na prática?" - perguntei. "Na prática ainda não saímos da paragem de Carolina Michaelis". Acordei. Tinha adormecido no metro. Mas estava outra vez um guna atrás de mim a ouvir Wagner muito alto e eu tive medo de estar novamente a sonhar. Fugi do metro, desci a rua Augusto Luso e só parei no Liceu Rodrigues de Freitas. Subitamente sinto uma mão no ombro, e estavam a pedir-me o cartão andante do metro: "Já validou?" - inquiriu o revisor. Ouço um gritinho, algures: "d3 para e4, toma peão perdido en passant!"

quinta-feira, 21 de junho de 2012

mesmo o fungo filosofal se propaga por esporos

Dizem que é por causa de um fungo das linhas, que os telefones da Faculdade de Letras começaram a avariar. O dito fungo começou a disseminar-se a partir do Departamento de Filosofia. Há quem declarasse que era causado pela humidade dos livros, mas todos sabem que mesmo o fungo filosofal se propaga por esporos. Então decidiram abrir o pavimento do Gabinete do Departamento, onde se veio a encontrar um esqueleto de coruja. De acordo com o médico legista, a coruja foi morta com um golpe de livro. Há quem pense que o fungo das linhas tinha origem na coruja, mas os cépticos insistiam que a causalidade não era uma propriedade ôntica mas uma atribuição mental por inferência indutiva, e que, portanto, não aderira ao fungo filosofal nenhuma causa determinante, de modo que esse bolor imprestável era livre, responsável e imputável. O que ele fazia às linhas telefónicas não era menos estranho: as vozes das pessoas saíam com o som de balidos prolongados. Os técnicos disseram que as anomalias da linha podiam ser resolvidas com a emissão de uma frequência antimicótica. O problema desta solução é que fez desaparecer os textos de vinte e seis livros, dissertações, jornais e revistas, que não puderam ser recuperados. Os telefones, porém, não tornaram a balir.

domingo, 17 de junho de 2012

de quem mistura água na sopa

Uns metros à esquerda da entrada do Hospital da Boavista, há um portal que transporta os mais distraídos para o Maravilhoso Reino da Sopa. Quem registou o portal sofria de dislexia, porque a lenda conta que o portal devia conduzir para o Reino do Sapo e não da Sopa. O sapo fazia parte de uma provação: quem conseguisse alcançar e beijar um sapo que ia para cima de um semáforo suspenso, podia voltar à realidade. O problema é que o Reino do Sapo era exactamente igual à realidade, excepto pelo facto de ter um sapo. A visão sistemática do mesmo, em cima do semáforo da rua da Boavista, deu origem a uma condição conhecida por Síndrome de Ansiedade Anfibioscópica. Esta doença só existia mesmo no Reino do Sapo, cujo único portal funcional se encontra num lago do Jardim Botânico. O mais insidioso no Reino do Sapo é que, todo aquele que houver transposto o seu portal, pensará que apenas caiu num lago, até ao dia em que vê o sapo. O mesmo não acontece no Reino da Sopa, que foi provocado por um infeliz erro de registo tipográfico. O portal está num montinho de folhas acumulado pelo vento, que rodopia ao lado da entrada do Hospital da Boavista. Quem entrar ali, percebe que se passou para o Maravilhoso Reino da Sopa, ainda que não saiba que é este o seu nome. Para começar, as ruas têm o nome trocado, porque quem comete um erro, comete muitos, e na ementa dos restaurantes aparecem menus com uma particularidade bizarra:

MENU ESTUDANTE: Prato principal + Sapo + Bebida + Café = 5,5 euros

Seria um erro perdoável se estivesse apenas afixado num restaurante. E, claro, se não servissem, efectivamente, sapos galvanizados em sopas, com uma bateria e tudo. E parece que ninguém fazia caso disso. Outra pecularidade previsível do Maravilhoso Reino da Sopa é o cheiro pestilento a cantina que paira sobre a cidade. E as pessoas nesse reino parecem misteriosamente pálidas e deslavadas. Conta que a culpa é de quem mistura água na sopa. O céu, quando não tem nuvens, é esverdeado e por vezes podemos ver nele uma couve. A culpa disso, por sua vez, é de quem passa mal as sopas com a varinha. Ultimamente, a rua da Boavista do Maravilhoso Reino da Sopa transformou-se num pântano cheio de sapos. Não se percebe muito bem porquê, mas há quem especule que a culpa é de um coleccionador de folhas conhecido como Inácio Pedroso. Parece que andou a apanhar folhinhas do montículo do portal da Boavista e que, quando foi ao Botânico apanhar outras tantas, caiu com todas elas no lago e cruzou os reinos, provocando o caos. Apareceu no telejornal o caso dos sapos galvanizados e empreenderam-se esforços para drenar a rua da Boavista. Tudo parece ter voltado à normalidade. Porém, fica por explicar por que razão, no outro dia, eu vi alguém a trepar a um semáforo sem sapo. Olhei bem, e vi um espinafre no céu.

sábado, 21 de abril de 2012

Subir à antena de televisão

Era ainda de madrugada, quando o barulho na garagem do Mário Antunes me acordou. Quando estive com ele, umas horas depois, contou-me que tinham sido as formigas a fazer aquele barulho todo, à medida que marchavam sobre o portão da garagem. "E para que queriam elas subir o portão?", inquiri. O Antunes disse que não sabia. Já há pelo menos um ano, que eu sabia que ele tinha uma praga de formigas na garagem. Alegadamente, elas alimentavam-se da pintura do seu Mercedes, que estava cada vez mais carcomido. Eu sei que o Antunes é um homem cordato e de bons costumes, mas quando ele começou a perseguir as formigas com sprays de tinta, fiquei a perceber como ele estava transtornado com aquilo. Pouco tempo depois, apareceram-me formigas às cores no pátio da minha casa. Elas conseguiram subir à antena de televisão, e agora só apanho estática. Pode ser impressão minha, mas acho que consegui ouvir, no meio da estática, o tema da Internacional Socialista. Encontrei algumas formigas a comer as letras douradas dos meus livros de história da civilização, e vi outras tantas a comer a franja do meu tapete persa. Eu percebi então, que havia uma maneira de as pôr fora dali. Liguei a rádio muito alto numa transmissão das 5h, do "Chá burguês". Falaram um pouco do casamento real e de insecticida de primeira classe, e todas as formigas saíram em fila pela porta do fundo.

domingo, 25 de março de 2012

A tocar saxofone na banheira

Desde meados de Março que se instalou um indivíduo peculiar no 3 Direito. A Dona Teresa, do rés-de-chão, disse-me que ele tem o mau costume de estacionar o seu carocha no jardim, em cima das dioneias do senhor António. Irritado por ver o carro outra vez em cima das suas plantas, o senhor António disse-me que gostava que elas comessem os pneus ao carocha do vizinho. Ele acrescentou que, se as plantas já comeram vespas, também podiam comer carochas. Eu tive de lhe explicar que as vespas motorizadas, tal como a carocha do vizinho, não eram insectos e, mesmo que fossem, eram grandes demais para as suas dioneias. Ele decidiu relatar o dia em que viu uma delas a comer um aranhiço. Eu lembrei-lhe que os aranhiços cairam em desuso, porque as bicicletas têm um eixo mais estável e uma tracção mais eficiente. Despedi-me cordialmente e, no dia seguinte, acordei subitamente de um sonho sobre elefantes: era o novo vizinho, que devia estar novamente a tocar saxofone na banheira. O som viajava através da canalização e das condutas de ar, esganiçado e distorcido, e chegava ao meu apartamento como uma cólica musical. Eu fui ter com o vizinho e enganei-me na porta. Atendeu o senhor António, todo encharcado com uma planta da família das nepenthes na mão. "Não faça caso do barulho", pediu. "É que as minhas plantas estão desafinadas." Minutos depois, fui ter com o outro vizinho, que abriu a porta devagar e disse: "Desculpe. Comprei o meu saxofone faz amanhã duas semanas e adivinhe! Está entupido com carochas, vespas e aranhiços." Eu pensei para comigo: "Se cabem carochas no seu saxofone, por que raio continua ele a insistir em estacionar o seu carro no jardim?" Depois senti o desconsolo de quem pensou um disparate.

sábado, 10 de março de 2012

vi rebentos de cânhamo

Eu já desconfiava que algo estava errado quando vi rebentos de cânhamo a sair do cabelo da tia Eulália. Então decidi investigar e acabei por perceber a origem do prodígio. Quando a tia usou uma peruca primeira vez, ela percebeu que lhe assentava mal. A tia é baixinha e tem uma cabeça pequena demais. Ela tentou prender a peruca com ganchos, mas caía-lhe. Tentou encher com umas esponjas pequenas, mas levantava-se-lhe a cabeleira. Então, como tinha uns canários, colocou uma meia de lycra cheia de comida de pássaro debaixo da peruca e andou assim algum tempo, até lhe começarem a crescer plantas na cabeça. Há pouco tempo, um primo meu, que sempre foi um pouco desassizado, pediu autorização à tia para cortar um pedaço de cânhamo da peruca e alegou que era porque queria fazer um charro para ficar "alto". A tia não percebeu e exclamou "se fores como a tua mãe nunca serás alto!" Furiosa, atirou a cabeleira pela janela, e ela caiu em cima da haste da bandeira do CDS-PP. Ainda lá está. Correm rumores pela cidade de que aquilo é uma provocação dos anarquistas, mas eu sei que não é.

quinta-feira, 1 de março de 2012

moscas e impressoras

Quase toda a gente sabe que algumas impressoras são dignas de serem consideradas a espécie mais caprichosa e irritante de entre os aparelhos informáticos. Luzinhas que piscam, arranques e soluços, barulho frenético de rolamentos, chiados hesitantes e páginas vomitadas com hieróglifos, e um único botão (em alguns casos) para controlar todas as funções.
Ora, eu tenho uma destas máquinas lógicas que decidiu imprimir moscas para levar mais longe o desafio de me irritar. Troquei recentemente um toner e imprimi uma página de teste. Além de estar monocromática, saiu com uma frase enigmática no canto superior esquerdo:

SPL-C ERRORNon, laissez-la parler!
Laissez-la parler.
C'est Agamemnon qui l'inspireINCOMPLETE SESSION BY TIME OUT


Eu deixei o que estava a fazer e aproximei-me da máquina. Parecia tudo normal, se a palavra “normal” se pode aplicar às impressoras. De repente, ela recomeçou a imprimir, muito lentamente e eu presumi que estava a sair algo a cores. Já não era mau. Quando voltei a página, constatei com algum nojo que estava cheia de moscas a cores e com alta definição. Era óbvio que a máquina estava no gozo. Ela sabe que há duas coisas que me irritam: moscas e impressoras. Eis a combinação perfeita. Desliguei a máquina no interruptor, voltei a ligá-la e ela deu um ronco. Eu tinha um documento sobre Sartre para imprimir e, antes de o mandar para imprimir ouvi um barulho anacrónico. Era o barulho das impressoras de agulhas. Não há dúvida que a impressora estava a fazer uma regressão birrenta. Imprimiu, com pontinhos, a seguinte mensagem:

INTERNAL ERRORChère Eléctre!PLEASE USE THE PROPER DRIVER

Eu decidi cancelar a impressão mas despejou ainda algumas páginas em branco e, no rodapé da última, aparecia escrito, ainda ao estilo das impressoras matriciais:

Pourquoi refuses-tu mon aide?PAGE 4

Eu achava que já tinha visto tudo, quando tive a impressão de ver sair da impressora uma mosca. Por momentos pensei que, se visse de perto, constataria que era uma mosca francesa. “Que disparate!”, pensei logo a seguir: “As moscas não têm nacionalidade. E não saem moscas de dentro de impressoras.” Nesse preciso momento, vejo no canto inferior direito do ecrã uma mensagem a dizer:

One of the USB devices attached to this computer has malfunctioned, and the system does not recognize it. For assistance in solving this problem, click this message.

Eu cliquei, e apareceu a mensagem:

Que nous importent les mouches?Click finish to close the wizard.

A impressora estava a transmitir ao computador as suas manias. Aquele disparate tinha de acabar, por isso decidi desligar o computador e sair de casa para tomar um café que me fizesse esquecer que tinha uma impressora neurótica. Quando cheguei a casa tive de atravessar uma nuvem de moscas para chegar ao computador e, no chão, encontrei uma página cuidadosamente impressa num tipo de letra serifado em tamanho grande:

Et l'angoisse qui te dévore, crois-tu qu'elle cessera jamais de me ronger? Mais que m'importe: je suis libre.

A impressora nunca mais voltou a trabalhar.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

É indispensável para um bom esparguete


O meu amigo, Tiago Couto, manifestou um certo grau de preocupação quando me confidenciou que encontrou um volume da Psicopatologia da Vida Quotidiana dentro do seu frigorífico. Ele disse que não se lembrava de o ter posto lá, nem tão-pouco de possuir o dito livro. Eu, como é costume, aconselhei-o prudentemente. Disse-lhe que o fosse devolver à mercearia, julgando eu que ele estava a confundir as coisas e que, na realidade, se tratava de um frasco de polpa de tomate, e não de um livro de Freud. Quando o Tiago me disse que na mercearia gozaram com ele, eu decidi gastar algum dinheiro para dar uma lição ao dono da mercearia, que era um homem mal-encarado e com a mania que vendia as melhores laranjas do mundo. Comprei quatro volumes da Interpretação dos Sonhos e, enquanto o homem da mercearia não estava a ver, ajeitei-os entre os frascos de polpa de tomate. Aqui há uns dias atrás, o Tiago veio a minha casa, esbaforido, explicar-me que começou a sonhar que matava o dono da mercearia, e que se formava uma poça de sangue comprida que ia até à rua. Ainda por cima, as pessoas tropeçavam nela. Eu convenci-o de que não eram pessoas, mas bonecos, e que não era sangue, mas polpa de tomate. No entanto, isso não pareceu apaziguá-lo. Decidi ir com ele até à mercearia e encontrámos o homem, de rabo para o ar, a remexer no meio dos pacotes de esparguete. Ele dizia que tinha caído, atrás da prateleira, o Dicionário dos Símbolos. Eu disse-lhe que não devia ser isso que ele procurava. “Mas o que raio é que julga que eu procuro, então?”, interrogou o homem. “O senhor procura, na realidade, um frasco de polpa de tomate.” Peguei num dos frascos que estavam na prateleira e entreguei-o. “É indispensável para um bom esparguete”, assegurei. O Tiago, notoriamente amedrontado, murmurou ao meu ouvido: “Mas ele procura um livro!”, ao que eu respondi: “Deixa estar. Quando o encontrar já vai estar fora de prazo."

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Flores de molho em água benta

Numa conversa de fim-de-tarde com a dona Elvira dos Santos, acabei por descobrir que ela se sentia perseguida por orquídeas. Ao princípio, pareceu-me bizarro. Mas depois acabei por perceber a razão pela qual ela tinha abandonado as suas flores numa pia baptismal. Enquanto a dona Elvira foi atender um telefonema, eu senti uma presença invulgar na sua sala. As orquídeas estavam atrás de mim e, quando eu me voltava para trás, elas mexiam. Parece-me que elas se punham a espreitar quando eu não estava a ver. Olhei intensamente para as quatro plantas. Elas estavam paradas. Voltei-me novamente e ouvi fungar atrás de mim. Entretanto, chegou a dona Elvira. "Ela também fungam?" - perguntei-lhe. Amarela como um limão, a senhora cambaleou, sentou-se num sofá com a mão a tremer e olhou para o ar. Depois suspirou: "Sim." Ela contou que, de noite, o gira-discos começava a tocar canções do José Cid e a ventoinha do tecto dançava. As torneiras soluçavam. Até o gato, que era velho e tinha uma carecada, imitava as flores e bufava-lhes de vez em quando. "Por que razão não deita fora as plantas?", inquiri. Arregalou os olhos, pôs-me as mãos nos joelhos: "Não diga isso!", murmurou e olhou para elas com medo.
Dois dias depois, ouvi o senhor do quiosque comentar que alguém tinha deixado na igreja flores de molho em água benta, com a etiqueta comercial original onde se podia ler:

"Orquídeas Phalaenopsis Poltergeist. Encherão a sua casa de vida. Olhe por elas e elas olharão para si. Regar semanalmente."

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Dentro dos champôs

Já ouvi falar em rãs empacotadas em embalagens de couves. Mas aquele barulho da tampa das garrafas de champô não é a voz de uma rã, porque não há rãs dentro dos champôs. Eu insisto nisto: não são rãs. A Stumpfkopf lançou uma nova linha de champôs com nomes de deuses egípcios, o que em si só já é uma má ideia. Um dos champôs para cabelos oleosos chama-se "Atum". Mas a ideia mais infeliz foi dar o nome de "Amun-ra" ao champô anti-caspa. Com óbvia curiosidade, comprei o Amun-ra e por causa disso sonhei que bebia girinos. Nunca mais abri aquele champô: ele coaxa furiosamente. Anteontem limitei-me a usar sabonete "Nilo" e no dia seguinte tive uma inundação no quarto de banho e o picheleiro só apareceu ao final da tarde.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Pelo lince embalsamado

Faz parte do acervo museológico da minha velha escola uma colecção de animais embalsamados. Num dia, a meio de Março, desapareceu um pato empalhado, e as suspeitas recaíram sobre uma turma do décimo ano na qual, segundo consta, o pato-real havia sido objecto de aposta. Mas parece que a ideia consistia em roubar os olhos de vidro ao bicho e substituí-los por berlindes, e não fazê-lo desaparecer. Depois do assunto ter sido debatido em Conselho Pedagógico, que decidiu abrir um inquérito, surgiu um novo boato: o pato tinha sido comido pelo lince embalsamado. Ora, qualquer pessoa com discernimento sabe como isto é improvável. Entretanto, também desapareceram da biblioteca da escola seis grossos volumes de Anatomia Patológica. De acordo com os registos da biblioteca, a última vez que um destes volumes tinha sido consultado foi em 1928. No final de Março, o pato-real era assunto, não apenas das aulas de ornitologia, de aeromodelismo, de culinária, mas também de ontologia: “o ser do pato podia ter perdido, não a sua substância, não a sua quantidade, qualidade, relação, etc., mas somente o seu lugar original em consequência de uma apropriação por um sujeito desconhecido”, afirmou um professor de filosofia alemão, insistindo que o pato era um Ente, isto é, um pato. Mas todos acharam esta hipótese demasiado filosófica e abstracta, portanto nem sequer se considerou viável que o pato pudesse ter sido roubado. A 30 de Março apareceram, nos espelhos das casas-de-banho dos homens, inscrições a baton dizendo:

“Toda a biografia é uma patografia.”
Arthur Schopenhauer

Uma aluna declarou-se responsável por tudo o que havia sucedido a respeito do pato e queria devolvê-lo. Mas como era o primeiro de Abril, a declaração foi ignorada, apesar da seriedade da aluna, que trazia um animal embalsamado num braço e um saco com uns volumes velhos de Anatomia Patológica no outro. O mistério agravou-se quando o animal empalhado regressou à vitrina e os livros à respectiva estante. O episódio ficou conhecido entre os alunos como “A cena do pato” e entre os professores, simplesmente, “A reaparição inadvertida da ave aquática embalsamada cujo desaparecimento provisório é manifestamente atribuível a causas misteriosas.”

sábado, 14 de janeiro de 2012

A apanhar o seu sapato

Quem for a subir, atentamente, a rua Faria Guimarães, há-de reparar que há um tapete em cima de uma das árvores da calçada. Ora, tudo começou quando o senhor Frederico Mendes decidiu comprar uns sapatos que lhe ficavam grandes demais. Não foi por acaso: ele queria deixar espaço para a planta do pé crescer. O pobre senhor Frederico, porventura já ligeiramente tocado de demência, achava que todas as plantas tinham de crescer, e acreditava que a expansão da planta do metro do Porto era uma prova disso. Ele estaria longe de julgar que a estação de Santo Ovídio podia dar flor. Mas não duvidava que, apesar da sua provecta idade, os seus pés teriam de crescer. Ia ele a descer a rua, numa tarde soalheira, e tropeça numa raiz. Eu nunca vi, na rua Faria Guimarães, raízes salientes, mas é assim que me foi narrada a história. Tropeça na raiz e salta-lhe o sapato. Eu estou a imaginá-lo, vermelho de cólera e embaraço a apanhar o seu sapato e a insultar a árvore. O senhor que não gostava de perturbar os grelos das batatas, passou a ter um deleite rancoroso em incomodar aquela árvore.

Certo dia, quando desapareceu o gato da vizinha, ele assumiu a tarefa de espalhar dezasseis anúncios - no tronco da mesma árvore. Uma vez sonhou com portas cheias de narizes, e acordou de madrugada com uma ideia: pegou em todos os perfumes da sua mulher e no seu after shave, misturou-os com azeite e aguardente dentro de um pote, e regou a árvore com a mistura. Sentiu-se triunfante, achou que tinha conseguido irritar o vegetal que placidamente o observava do alto. Mas chegou a Primavera e a árvore encheu-se de folhinhas. Ela crescia, abençoada pela graça divina. O senhor Frederico ficava cada vez mais raivoso, à medida que os dias passavam. Já não dançava com a mulher no seu tapete favorito, porque achava que os seus pés não cresciam por culpa da árvore maldita. Então lembrou-se da provocação perfeita que iria coroar todas as suas pequenas vinganças e satisfazer, finalmente, toda a sua ira: dançar em cima da árvore. Içou o seu tapete favorito - roto e velho - para cima dos ramos, e no momento em que ia começar a dançar, caíram-lhe os sapatos ao chão e o pobre homem ficou pendurado por um ramo. "Estás a ver!", disse a mulher, que o observava do chão com as mãos nas ancas: "Fizestes-lhe judiarias e ela ainda te ampara." Rubicundo de fúria, o senhor Frederico exclamou: "Os meus sapatos!"

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

E era uma lâmpada

Há uns dias atrás, eu cheguei a casa, acendi as luzes, e tive a mesma sensação estranha que me arrepiava em alguns sonhos: reparei que elas não estavam propriamente acesas. A sua luz era baixinha, verde e vacilante. De repente, uma lâmpada fundiu. Havia uma janela aberta num quarto do fundo e o nevoeiro avançava para dentro de casa, transportando consigo um cheiro a pântano. Ouvi atrás de mim um tic, tic, tic. Olhei e era outra lâmpada. Mas alguma coisa nela parecia mexer-se. Aproximei-me, e estava, lá dentro, a cirandar freneticamente, um aranhiço patudo. "Detesto estes bichos", pensei. Desatarrachei a lâmpada e as outras todas voltaram à normalidade. Com a lâmpada apagada na mão, senti-me no direito de fazer perguntas. "Quem és?", inquiri. Dentro da lâmpada, a aranha mexeu e eu ouvi, baixinho:
- Sou Edison.
- Mas que disparate! - Bradei.
- Thomas Edison. - insistiu a criatura.
- Pois eu não acredito na reincarnação de génios em aranhas!
- Eu sou o génio da lâmpada e posso realizar três...
- Que tolice - interrompi - eu nem acredito nessas coisas!
Um bocado farto daquela cena, e com pouca vontade que se repetisse, dei a lâmpada ao meu vizinho, que vê mal e não reparou na aranha. Consta que a colocou na casa de banho e que funciona lindamente.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Sejam de vespas ou de estrelas

Havia um pequeno ninho de vespas no meio dos meus livros. Uma vez, eu queria alcançar a Crítica da Razão Pura que estava mesmo no meio da prateleira, e saiu uma vespa do ninho. Deu-me uma seca sobre Kant de tal modo entediante, que eu tive de esfregar a testa com vinagre e meter-me na cama. Consta que, durante o delírio, eu reclamava ser o Sujeito Transcendental. Melhorei rapidamente, mas, infelizmente, a rapidez era só um atributo da minha intuição pura a priori.
A picada permaneceu no meio da minha testa durante uns dias. Depoi vinguei-me das vespas e li-lhes um opúsculo cosmológico de Vespácio Ferrão, que dizia, entre outras coisas:

"Enquanto que os livros abrigam insectos rastejantes como os bichos da madeira, o infinito aloja os enxames galácticos mais prósperos e abundantes."

E eu acrescentei: sejam de vespas ou estrelas.

Convencidas, e com razão, da finitude do meu quarto, voaram todas pela janela em direcção ao infinito e deixaram para trás o ninho cheio de larvas que eu tive de limpar e foi um nojo.

Eu a reparar naquelas coisas

Ao contrário de todos os outros, que repousavam silenciosamente no prato, aquele cogumelo emitia um zumbido metálico. Aquilo já me estava a irritar, e estive mesmo para tirá-lo da mesa. Mas mais ninguém parecia preocupado com o barulho. Mais ninguém parecia notar. Em circunstâncias como aquela, eu por vezes perguntava-me o que fazia as pessoas tão distraídas, e sentia-me muito só por apenas eu reparar naquelas coisas. Após um curto intervalo, no qual me servi dum bocado de salada, pareceu-me que era óbvia a origem do zumbido metálico: eu tinha guardado o cogumelo no frigorífico. Era natural que ele o imitasse, fazendo aquele barulho mais próprio dos electrodomésticos do que dos fungos. Então decidi desafiar o cogumelo. "Eu sei o que tu queres", disse-lhe. Ele zumbia como se não fosse nada. "Queres ser especial. Queres ser diferente". Com isto, o barulho parou. Olhei para os outros que olhavam para mim, e pensei: "Devo ser eu que estou a ouvir coisas." Continuei a comer e, momentos depois, vi uma luz estranha na mesa. Era o cogumelo que estava a cintilar. Já muito indignado, eu bati com a mão na mesa, levantei-me e disse: "Se isto continuar assim, ponho-te no lixo, e lá tu podes brilhar e zumbir à vontade." Eu estava possesso. "E mais: se queres estragar o jantar das pessoas, por que raio não o fazes discretamente, como a maior parte dos cogumelos? Os cogumelos normais envenenam, enquanto que tu, feito estrela de cinema, gostas de brilhar... não tens vergonha dessa pretensão ridícula, ó fungo miserável?" As pessoas olhavam para mim embasbacadas, e eu senti que tinha exagerado. Peguei no cogumelo com um guardanapo de papel e meti-o no lixo.
Na noite seguinte, sonhei que havia cogumelos à mesa e que deitei alguns fora porque estavam estragados.