Encontrei uma delicada peça de origami, com forma de cisne, a flutuar numa fonte pública. Quando me aproximei, reparei que a folha tinha uma inscrição curiosa: rainha para f3. Quando acabei de ler, o cisne em papel levantou voo, disparatadamente, e eu segui-o pela rua fora até ele aterrar na cabeça de um velhote, que não se apercebeu que tinha uma peça de origami na cabeça. Ou assim me parecera. Uns segundos depois, o homem desata aos berros pela rua fora, agitando a bengala: "torre para e2!" O cisne esvoaçou para cima da cabeça de uma peixeira clandestina, que agarrou num peixe pelas guelras e exclamou, triunfante: "rainha para b4. Xeque-mate!" A peixeira fez uma dança russa, com uma agilidade impressionante, mas caiu no chão, no preciso momento em que o cisne voou da sua cabeça, para pousar numa poça de lama. Eu observei de perto, e reparei que agora tinha uma inscrição diferente, em russo, que eu traduzi: "Cuidado, Sergei, que estes portugueses são malucos. Espera lá... Já estás a transmitir?" Então peguei no cisne, agitei-o e reparei que era uma notável peça de tecnologia psicotrónica. Trouxe-a para casa e pendurei-a na árvore de Natal, que, desde então me dá notícias diárias de espionagem russa. Decidi publicar os nomes dos agentes num site de revivalismo dos anos 80, e parece-me que ninguém levou a sério o meu trabalho. Deve ser por ter revelado a minha fonte.
segunda-feira, 3 de dezembro de 2012
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
o mistério do arco-íris torto
sexta-feira, 9 de novembro de 2012
Não se incomode com as migalhas
«Ai a minha vida! Agora tenho de ter cuidado ao cortar o pão, para que Sua Excelência não se incomode com as migalhas!»
terça-feira, 23 de outubro de 2012
espirrava na série de Fibonacci
Eles não sabiam que foi com uma boa razão que eu o fiz. No fim da minha rua costuma estar um cão sem cauda. É branco às pintas e gosta de atravessar de um lado para o outro da passadeira. Também tem outro hábito intrigante: por vezes, encontro-o, imóvel, a olhar para o vidro do talho. Reparei, no entanto, que não é por gula da carne que ali se encontra exposta. Cheguei à conclusão errada que era porque contemplava o seu reflexo, perplexo de estupidez. "Estupidez", pensei eu. E pensei mal. Um dia, decidi seguir o cão pela rua fora e vi-o a dar voltas e a sentar-se aproximadamente de dez em dez metros. "Que cão estúpido!", julguei eu, antes de perceber que ele dava voltas em sequências de números primos. Logo que percebi a sequência, prestei mais atenção, e percebi também que ele espirrava uma vez, depois outra vez, depois duas vezes seguidas, depois três, cinco, oito. Sim, claro, espirrava na série de Fibonacci. De repente, o cão começou a ladrar histericamente e eu reparei que era, provavelmente, por ter passado por outro talho. Pôs-se a olhar fixamente para dentro, através do vidro. Se não fosse um cão, eu diria que tinha uma expressão de choque e consternação, e não de gula. Depois, inquieto, contemplava o reflexo justaposto e cheirava o vidro desesperadamente. No entanto, algo de incrível sucedeu quando chegámos à praça Carlos Alberto. Ele começa a arrancar, com a boca, as pedras da calçada do meio da praça. Quando percebi que ele as tinha arrancado num padrão de pentagrama, fui ter com o cão e perguntei-lhe se sabia código morse. Ele imediatamente ladrou, em código morse: «Socorro, sou Pitágoras».
Eu fui para casa a meditar no meu risco em acreditar, como os pitagóricos, na transmigração das almas. Passei por uma livraria religiosa de Cedofeita, que tinha na montra um livro de auto-ajuda com o título "Acredite, e acontecerá!" Comprei o livro, com a intenção exclusiva de não acreditar na sua premissa principal. A partir daí, achei que podia continuar a acreditar na trasmigração das almas, sem risco de ir parar à montra de um talho qualquer numa vida futura, tragicamente contemplada por um cão genial.
sábado, 15 de setembro de 2012
as ameixas e os ratos
Na semana passada tomei uma ameixa por um rato. Tinha caído de uma árvore próxima e descia, aos saltos, uma pequena rua inclinada do Roçaio, na Serra da Lousã. Na mesma noite, tive a impressão de ver ameixas a adejar como morcegos sobre um arvoredo mal iluminado de Gondramaz. Aproximei-me do lugar, e uma das árvores era uma ameixeira que, por sinal, chiava tremendamente. Para apanhar um dos frutos, rebentei um ramo e, quando me dei conta do achado, tinha um rato arcaico (dos de bolinha, PS/2) na mão, daqueles que não são comestíveis como as ameixas são.
Nessa noite, acordei para ir beber água, e vi uma ameixa a esgravatar na parede ao lado da lareira. Peguei nela com cuidado e pu-la fora de casa. Ao regressar ao meu quarto, vi uma fila de ameixas a rolar rapidamente num canto da casa. Apareceram, entretanto, algumas portas de USB junto ao chão. Eu comecei a suspeitar que as ameixas e os ratos tinham algum tipo de afinidade transcendente.
Anteontem voltei a Lisboa, e vi novamente aquela velhinha a quem chamavam "a bruxa do Chiado". Dizia-se que é porque cozinhava ratos arcaicos que chiavam muito (dos de bolinha, PS/2). Mas a verdade é que a velhinha costumava andar naquela zona com um carro de compras que chiava desalmadamente. Desta vez vi cair uma ameixa verde do seu carrinho e abordei-a. "Minha senhora", comecei, "deixou cair isto". A velhinha virou-se para mim, com um ar altivo e ligeiramente ofendido e retorquiu: "Muito obrigada, mas acha mesmo que preciso de ameixas para fazer compota de rato?" Quando cheguei ao quarto do hotel, vi o meu portátil com um rato óptico a piscar ao lado direito. O mundo tinha voltado à normalidade. Ou quase: do lado de baixo do rato podia ler-se: "Plumjuice Corporation - Tested to comply with FCC Standards. For home or office use. Do not feed. Do not water. Made in China".
sábado, 8 de setembro de 2012
O Fotopteróide Radiobiónico
quinta-feira, 19 de julho de 2012
que mudem de clave
- Um quarto é suficiente para a resolução.
- Diga-me lá uma coisa - começou o presidente - Acha mesmo que temos uma orquestra de câmara? Não quero um quarto. Preciso, na verdade, de um auditório, e o da Câmara serve, desde que se retirem os ninhos de pombas. Consta que trazem pulgas.
- Espere... se um quarto não é suficiente, digamos, algo de semelhante poderá sê-lo. Dois oitavos.
- Eu ouvi bem? - inquiriu o presidente ajeitando a corneta no ouvido. - Duas oitavas? Tem amplitude mais do que suficiente. Mas para mim uma quinta perfeita chegava.
- Não temos quintas perfeitas desde que as quintas paralelas foram banidas... e há outro problema.
- Qual é?
- Uma praga de centopeias, desde que as semifusas foram legalizadas.
- Olhe, vou fazer uma pausa. Resolva isso rapidamente e tome esta batuta...
- Perdão, mas isto é... uma batata.
- Quer discutir fonética ou resolver uma crise?
- Resolver uma crise. Tem razão, tem razão. Uma outra coisa: tem havido algum alvoroço nas estações de metro da linha F desde que se introduziram linhas suplementares.
- Ora, que mudem de clave e já não precisam dessas linhas.
quinta-feira, 12 de julho de 2012
parquímetros de uma rua próxima
sábado, 30 de junho de 2012
uma luxuosa edição bilingue da Divina Comédia
quinta-feira, 21 de junho de 2012
mesmo o fungo filosofal se propaga por esporos
domingo, 17 de junho de 2012
de quem mistura água na sopa
MENU ESTUDANTE: Prato principal + Sapo + Bebida + Café = 5,5 euros
Seria um erro perdoável se estivesse apenas afixado num restaurante. E, claro, se não servissem, efectivamente, sapos galvanizados em sopas, com uma bateria e tudo. E parece que ninguém fazia caso disso. Outra pecularidade previsível do Maravilhoso Reino da Sopa é o cheiro pestilento a cantina que paira sobre a cidade. E as pessoas nesse reino parecem misteriosamente pálidas e deslavadas. Conta que a culpa é de quem mistura água na sopa. O céu, quando não tem nuvens, é esverdeado e por vezes podemos ver nele uma couve. A culpa disso, por sua vez, é de quem passa mal as sopas com a varinha. Ultimamente, a rua da Boavista do Maravilhoso Reino da Sopa transformou-se num pântano cheio de sapos. Não se percebe muito bem porquê, mas há quem especule que a culpa é de um coleccionador de folhas conhecido como Inácio Pedroso. Parece que andou a apanhar folhinhas do montículo do portal da Boavista e que, quando foi ao Botânico apanhar outras tantas, caiu com todas elas no lago e cruzou os reinos, provocando o caos. Apareceu no telejornal o caso dos sapos galvanizados e empreenderam-se esforços para drenar a rua da Boavista. Tudo parece ter voltado à normalidade. Porém, fica por explicar por que razão, no outro dia, eu vi alguém a trepar a um semáforo sem sapo. Olhei bem, e vi um espinafre no céu.
sábado, 21 de abril de 2012
Subir à antena de televisão
domingo, 25 de março de 2012
A tocar saxofone na banheira
Desde meados de Março que se instalou um indivíduo peculiar no 3 Direito. A Dona Teresa, do rés-de-chão, disse-me que ele tem o mau costume de estacionar o seu carocha no jardim, em cima das dioneias do senhor António. Irritado por ver o carro outra vez em cima das suas plantas, o senhor António disse-me que gostava que elas comessem os pneus ao carocha do vizinho. Ele acrescentou que, se as plantas já comeram vespas, também podiam comer carochas. Eu tive de lhe explicar que as vespas motorizadas, tal como a carocha do vizinho, não eram insectos e, mesmo que fossem, eram grandes demais para as suas dioneias. Ele decidiu relatar o dia em que viu uma delas a comer um aranhiço. Eu lembrei-lhe que os aranhiços cairam em desuso, porque as bicicletas têm um eixo mais estável e uma tracção mais eficiente. Despedi-me cordialmente e, no dia seguinte, acordei subitamente de um sonho sobre elefantes: era o novo vizinho, que devia estar novamente a tocar saxofone na banheira. O som viajava através da canalização e das condutas de ar, esganiçado e distorcido, e chegava ao meu apartamento como uma cólica musical. Eu fui ter com o vizinho e enganei-me na porta. Atendeu o senhor António, todo encharcado com uma planta da família das nepenthes na mão. "Não faça caso do barulho", pediu. "É que as minhas plantas estão desafinadas." Minutos depois, fui ter com o outro vizinho, que abriu a porta devagar e disse: "Desculpe. Comprei o meu saxofone faz amanhã duas semanas e adivinhe! Está entupido com carochas, vespas e aranhiços." Eu pensei para comigo: "Se cabem carochas no seu saxofone, por que raio continua ele a insistir em estacionar o seu carro no jardim?" Depois senti o desconsolo de quem pensou um disparate.
sábado, 10 de março de 2012
vi rebentos de cânhamo
quinta-feira, 1 de março de 2012
moscas e impressoras
Ora, eu tenho uma destas máquinas lógicas que decidiu imprimir moscas para levar mais longe o desafio de me irritar. Troquei recentemente um toner e imprimi uma página de teste. Além de estar monocromática, saiu com uma frase enigmática no canto superior esquerdo:
SPL-C ERRORNon, laissez-la parler!
Laissez-la parler.
C'est Agamemnon qui l'inspireINCOMPLETE SESSION BY TIME OUT
Eu deixei o que estava a fazer e aproximei-me da máquina. Parecia tudo normal, se a palavra “normal” se pode aplicar às impressoras. De repente, ela recomeçou a imprimir, muito lentamente e eu presumi que estava a sair algo a cores. Já não era mau. Quando voltei a página, constatei com algum nojo que estava cheia de moscas a cores e com alta definição. Era óbvio que a máquina estava no gozo. Ela sabe que há duas coisas que me irritam: moscas e impressoras. Eis a combinação perfeita. Desliguei a máquina no interruptor, voltei a ligá-la e ela deu um ronco. Eu tinha um documento sobre Sartre para imprimir e, antes de o mandar para imprimir ouvi um barulho anacrónico. Era o barulho das impressoras de agulhas. Não há dúvida que a impressora estava a fazer uma regressão birrenta. Imprimiu, com pontinhos, a seguinte mensagem:
INTERNAL ERRORChère Eléctre!PLEASE USE THE PROPER DRIVER
Eu decidi cancelar a impressão mas despejou ainda algumas páginas em branco e, no rodapé da última, aparecia escrito, ainda ao estilo das impressoras matriciais:
Pourquoi refuses-tu mon aide?PAGE 4
Eu achava que já tinha visto tudo, quando tive a impressão de ver sair da impressora uma mosca. Por momentos pensei que, se visse de perto, constataria que era uma mosca francesa. “Que disparate!”, pensei logo a seguir: “As moscas não têm nacionalidade. E não saem moscas de dentro de impressoras.” Nesse preciso momento, vejo no canto inferior direito do ecrã uma mensagem a dizer:
One of the USB devices attached to this computer has malfunctioned, and the system does not recognize it. For assistance in solving this problem, click this message.
Eu cliquei, e apareceu a mensagem:
Que nous importent les mouches?Click finish to close the wizard.
A impressora estava a transmitir ao computador as suas manias. Aquele disparate tinha de acabar, por isso decidi desligar o computador e sair de casa para tomar um café que me fizesse esquecer que tinha uma impressora neurótica. Quando cheguei a casa tive de atravessar uma nuvem de moscas para chegar ao computador e, no chão, encontrei uma página cuidadosamente impressa num tipo de letra serifado em tamanho grande:
Et l'angoisse qui te dévore, crois-tu qu'elle cessera jamais de me ronger? Mais que m'importe: je suis libre.
A impressora nunca mais voltou a trabalhar.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012
É indispensável para um bom esparguete
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Flores de molho em água benta
Dois dias depois, ouvi o senhor do quiosque comentar que alguém tinha deixado na igreja flores de molho em água benta, com a etiqueta comercial original onde se podia ler:
"Orquídeas Phalaenopsis Poltergeist. Encherão a sua casa de vida. Olhe por elas e elas olharão para si. Regar semanalmente."
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
Dentro dos champôs
segunda-feira, 16 de janeiro de 2012
Pelo lince embalsamado
sábado, 14 de janeiro de 2012
A apanhar o seu sapato
Certo dia, quando desapareceu o gato da vizinha, ele assumiu a tarefa de espalhar dezasseis anúncios - no tronco da mesma árvore. Uma vez sonhou com portas cheias de narizes, e acordou de madrugada com uma ideia: pegou em todos os perfumes da sua mulher e no seu after shave, misturou-os com azeite e aguardente dentro de um pote, e regou a árvore com a mistura. Sentiu-se triunfante, achou que tinha conseguido irritar o vegetal que placidamente o observava do alto. Mas chegou a Primavera e a árvore encheu-se de folhinhas. Ela crescia, abençoada pela graça divina. O senhor Frederico ficava cada vez mais raivoso, à medida que os dias passavam. Já não dançava com a mulher no seu tapete favorito, porque achava que os seus pés não cresciam por culpa da árvore maldita. Então lembrou-se da provocação perfeita que iria coroar todas as suas pequenas vinganças e satisfazer, finalmente, toda a sua ira: dançar em cima da árvore. Içou o seu tapete favorito - roto e velho - para cima dos ramos, e no momento em que ia começar a dançar, caíram-lhe os sapatos ao chão e o pobre homem ficou pendurado por um ramo. "Estás a ver!", disse a mulher, que o observava do chão com as mãos nas ancas: "Fizestes-lhe judiarias e ela ainda te ampara." Rubicundo de fúria, o senhor Frederico exclamou: "Os meus sapatos!"
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
E era uma lâmpada
Há uns dias atrás, eu cheguei a casa, acendi as luzes, e tive a mesma sensação estranha que me arrepiava em alguns sonhos: reparei que elas não estavam propriamente acesas. A sua luz era baixinha, verde e vacilante. De repente, uma lâmpada fundiu. Havia uma janela aberta num quarto do fundo e o nevoeiro avançava para dentro de casa, transportando consigo um cheiro a pântano. Ouvi atrás de mim um tic, tic, tic. Olhei e era outra lâmpada. Mas alguma coisa nela parecia mexer-se. Aproximei-me, e estava, lá dentro, a cirandar freneticamente, um aranhiço patudo. "Detesto estes bichos", pensei. Desatarrachei a lâmpada e as outras todas voltaram à normalidade. Com a lâmpada apagada na mão, senti-me no direito de fazer perguntas. "Quem és?", inquiri. Dentro da lâmpada, a aranha mexeu e eu ouvi, baixinho:
- Sou Edison.
- Mas que disparate! - Bradei.
- Thomas Edison. - insistiu a criatura.
- Pois eu não acredito na reincarnação de génios em aranhas!
- Eu sou o génio da lâmpada e posso realizar três...
- Que tolice - interrompi - eu nem acredito nessas coisas!
Um bocado farto daquela cena, e com pouca vontade que se repetisse, dei a lâmpada ao meu vizinho, que vê mal e não reparou na aranha. Consta que a colocou na casa de banho e que funciona lindamente.
domingo, 8 de janeiro de 2012
Sejam de vespas ou de estrelas
A picada permaneceu no meio da minha testa durante uns dias. Depoi vinguei-me das vespas e li-lhes um opúsculo cosmológico de Vespácio Ferrão, que dizia, entre outras coisas:
"Enquanto que os livros abrigam insectos rastejantes como os bichos da madeira, o infinito aloja os enxames galácticos mais prósperos e abundantes."
E eu acrescentei: sejam de vespas ou estrelas.
Convencidas, e com razão, da finitude do meu quarto, voaram todas pela janela em direcção ao infinito e deixaram para trás o ninho cheio de larvas que eu tive de limpar e foi um nojo.
Eu a reparar naquelas coisas
Na noite seguinte, sonhei que havia cogumelos à mesa e que deitei alguns fora porque estavam estragados.