sábado, 14 de janeiro de 2012

A apanhar o seu sapato

Quem for a subir, atentamente, a rua Faria Guimarães, há-de reparar que há um tapete em cima de uma das árvores da calçada. Ora, tudo começou quando o senhor Frederico Mendes decidiu comprar uns sapatos que lhe ficavam grandes demais. Não foi por acaso: ele queria deixar espaço para a planta do pé crescer. O pobre senhor Frederico, porventura já ligeiramente tocado de demência, achava que todas as plantas tinham de crescer, e acreditava que a expansão da planta do metro do Porto era uma prova disso. Ele estaria longe de julgar que a estação de Santo Ovídio podia dar flor. Mas não duvidava que, apesar da sua provecta idade, os seus pés teriam de crescer. Ia ele a descer a rua, numa tarde soalheira, e tropeça numa raiz. Eu nunca vi, na rua Faria Guimarães, raízes salientes, mas é assim que me foi narrada a história. Tropeça na raiz e salta-lhe o sapato. Eu estou a imaginá-lo, vermelho de cólera e embaraço a apanhar o seu sapato e a insultar a árvore. O senhor que não gostava de perturbar os grelos das batatas, passou a ter um deleite rancoroso em incomodar aquela árvore.

Certo dia, quando desapareceu o gato da vizinha, ele assumiu a tarefa de espalhar dezasseis anúncios - no tronco da mesma árvore. Uma vez sonhou com portas cheias de narizes, e acordou de madrugada com uma ideia: pegou em todos os perfumes da sua mulher e no seu after shave, misturou-os com azeite e aguardente dentro de um pote, e regou a árvore com a mistura. Sentiu-se triunfante, achou que tinha conseguido irritar o vegetal que placidamente o observava do alto. Mas chegou a Primavera e a árvore encheu-se de folhinhas. Ela crescia, abençoada pela graça divina. O senhor Frederico ficava cada vez mais raivoso, à medida que os dias passavam. Já não dançava com a mulher no seu tapete favorito, porque achava que os seus pés não cresciam por culpa da árvore maldita. Então lembrou-se da provocação perfeita que iria coroar todas as suas pequenas vinganças e satisfazer, finalmente, toda a sua ira: dançar em cima da árvore. Içou o seu tapete favorito - roto e velho - para cima dos ramos, e no momento em que ia começar a dançar, caíram-lhe os sapatos ao chão e o pobre homem ficou pendurado por um ramo. "Estás a ver!", disse a mulher, que o observava do chão com as mãos nas ancas: "Fizestes-lhe judiarias e ela ainda te ampara." Rubicundo de fúria, o senhor Frederico exclamou: "Os meus sapatos!"

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