quinta-feira, 9 de maio de 2013

a uma vocação

Tive de fazer ontem um reparo à administração do condomínio, para que seja resolvido o problema do tamanho demasiado generoso das caixas de correio. Isto não seria um problema sério, se não me aparecessem coisas estranhas junto da minha correspondência. Por exemplo, na sexta-feira passada apareceu um balão com rosto humano. Não imaginais quanto me custou rebentá-lo e pô-lo no lixo! Ele falava de infância e de liberdade, do seu grande desejo de voar, lamentando-se por estar insuflado com ar de pulmões humanos em vez de hélio ou assim. Ele nem calculava que eu me preparava para o esvaziar e descartar. Quando percebeu, suplicou-me para que eu me recordasse da sua passagem pela Terra, já que nunca tinha podido passar pelo céu. A minha consternação foi infinita, o arrependimento revolveu-me a consciência. Aquele ser desalmado e oco tinha vivido. Eu, julgando-o como balão, destruí-o. No domingo seguinte, para meu espanto redobrado, descobri um monte de agulhas e alfinetes dentro da caixa de correio. Piquei-me numa e não tenho a certeza se fui eu quem gemeu. "Foi a agulha que gemeu?", interroguei-me. Subitamente, mil vozes se levantaram de dentro da caixa de correio, num coro infernal e desafinado. Temi que todas aquelas agulhas se revoltassem contra mim, mas consegui, depois, discernir no coro estrídulo as palavras: "Também temos direitos! Direito a um destino, a um propósito, a uma vocação!" Depois percebi que aquela multidão furiosa de picos queria exercer a vocação de rebentar balões.

- Que cruéis! Por que não vos dedicais antes à costura? - perguntei.
- Porque a costura é para vós, humanos, que sangrais e rebentais de piedade!

"Que diabo de criaturas mais arrogantes.", pensei. Então fui remexer no lixo e encontrei o balão murcho que eu tinha deitado fora. Apanhei uma agulha no meio da multidão - ela picou-me em protesto - e cosi o balão, tornei a enchê-lo, desta vez com hélio, e soltei-o no ar. Vi-o subir em liberdade. Quando abri a caixa de correio, as agulhas protestavam. "Quereis rebentar balões livres, é isso?", perguntei cinicamente. "Quereis voar? Enchei-vos de hélio! Se souberdes como!" Então, com uma fúria colérica, liguei o meu aspirador portátil e suguei as agulhas. Uma delas, ligeiramente mais larga, não se despegava da superfície da caixa de correio.

- Tu tens a mania que és diferente? - inquiri.
- Não... Eu vivi numa bússola e perdi o Norte. Alistei-me, mas não quero matar. A minha vocação perdeu-se.
- E que vocação era essa?
- Orientar os que são livres e percorrem a superfície da Terra.
- E o céu? - perguntei.
- Santa ingenuidade! O céu? Os balões acabam todos por cair, os homens acabam todos por morrer. Mas enquanto descrevem o seu trânsito breve na superfície da Terra, eu conduzo-os para um destino qualquer. Mas, oh! Isso era quando eu vivia numa bússola. Agora vivo num exército que não sabe marchar - quanto mais voar! Deixe-me - suplico-lhe - deixe-me estar aqui. Pelo menos, na minha solidão e na minha velhice, poderei tocar nas cartas dos seus amigos distantes e ter, assim, um vislumbre de outros lugares. No cárcere voluntário de uma caixa de correio, eu, agulha de uma bússola perdida, não lamentarei mais o meu destino, pois fui sempre o destino dos que se cruzaram comigo. Deixe-me estar só, longe desse exército furioso e sanguinário.
- Está bem. - respondi. - Desde que não me abras a correspondência.