sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Não se incomode com as migalhas


Há uns dias atrás, encontrei o senhor Rafael Borges a recolher migalhas, da sua mesa do café, para dentro de uma caixa de tabaco. Eu sabia que ele não era assim tão necessitado que precisasse de juntar migalhas. Depois de ter colhido as migalhas, alçou a perna e deu corda ao relógio de bolso. Olhou para o céu através do vidro e suspirou. Eu não me atrevi a ir ter com ele. Mas, quando ele se foi embora, o dono do café atirou com o pano para cima do balcão e exclamou:
«Ai a minha vida! Agora tenho de ter cuidado ao cortar o pão, para que Sua Excelência não se incomode com as migalhas!»
Eu vim a saber que o senhor Borges tinha, nos últimos tempos, desenvolvido uma relação estranha com migalhas. «Anda a amigalhar migalhas num migalheiro sem dinheiro», troçou uma velhota que estava no café. Eu decidi investigar.
Ao segui-lo até casa, reparei que ele deixava migalhas pelo caminho. Como Hansel e Gretel. Mas mais estranho do que isso: os pedaços de pão estavam marcados com combinações alfanuméricas que ele ia escrevendo neles. A primeira era 355.4, a segunda era 4qu314, e a terceira era 0u7r4. Quando chegou ao prédio onde morava, deixou uma migalha com a seguinte inscrição: 536u3.m3. Eu achei que, obviamente, tinha de continuar. Então entrei no prédio. O ar do átrio de entrada cheirava a maçãs podres e ouvia-se um eco de tiquetaque de relógios antigos. Não consegui entrar no elevador com o senhor Borges, mas quando entrei nele a seguir, reparei que o interior era branco e almofadado como algumas celas dos manicómios, com uma placa dizendo: «Ecce Signum Salutis, Salus in Periculis».
Quando a porta do elevador se abriu, no andar 29, segui as migalhas até ao apartamento D-K que, por sinal, estava inacabado. Havia, por todo o lado, gaiolas de pássaros. Mas estas não tinham pássaros, apenas migalhas. O senhor Borges pegou numa gaiola dessas e entrou noutro elevador. Este segundo elevador também era almofadado, mas de tecido vermelho. Quando entrei, atrás dele, constatei que as paredes do elevador se revolviam e uma substância viscosa descia do topo.
Já na rua, encontrei o homem a segurar uma gaiola com um pássaro vivo lá dentro. Não percebi.
Cheguei a casa e pensei na bizarraria do assunto. Coloquei sobre a mesa um livro com fragmentos dos pré-socráticos, e abri a página 355, capítulo 4. Encontrei um filósofo que não conhecia: o Cereanto de Mileto. O fragmento 29 D-K dizia:

(…) Eleva-se para o céu e desce para a terra. É a ave, que primeiro é pão e depois é ave. Mas nenhuma transição se opera sem a presença de forças. Por isso o pão é digerido antes de ser ave, e a ave é digerida antes de ser homem. E o homem é digerido antes de (…)

E termina aí o fragmento, que parecia dizer que as migalhas tinham sido digeridas no elevador, e aí passaram a ser um pássaro. Eu, por acaso, comi frango ao almoço. E o homem, passa a ser o quê? Olhei-me no espelho e percebi: o homem não se digere em mais nenhum ser. Não, não é por estar no topo da cadeia alimentar. É porque foi ele inventou o elevador, com um botão para o andar 29, cujo D-K, por sinal, estava inacabado.

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