quarta-feira, 10 de setembro de 2014
o senhor é um ganso
- Desculpe - comecei. - Eu pensava que isto era o Jogo do Ganso.
- Não me faça perder tempo - respondeu o coelho, apressando-se na direcção da casa 19.
- Mas ajude-me a entender isto! Aquilo ali é a Casa da Morte ou...
Subitamente, o semblante do coelho iluminou-se e ele sorriu como um gato.
- Ah! Mas tu és a Alice! Mas por que raio estás de calças?
Rapidamente tentei lembrar-me se tinha a medicação em dia, mas o coelho interrompeu-me, berrando:
- Vamos, vamos. Não há tempo a perder.
Aquilo estava cada vez mais estranho. Havia ovos partidos e dados espalhados pelo caminho. Na última casa do jogo havia um grupo de cavalheiros a discutir e um ganso a fumar shisha em cima de um cogumelo.
- Desculpai-me a intromissão - declarei, e todos olharam para trás, procurando saber quem eu era.
- Olhem, é a Alice! - exclamou um.
- Não sou Alice nenhuma. Algum de vós me pode dizer quem é que teve o desatino de misturar o Jogo do Ganso com o País das Maravilhas? Isto era suposto ser o Jogo do Ganso.
Eles entreolharam-se e o Ganso falou:
- Rapariga estúpida! Os cavalheiros alugaram à hora o País das Maravilhas...
- Mas isto é a cidade do Porto e estão a estragar o pavimen...
- O País das Maravilhas comprou a cidade do Porto. Tu ainda não reparaste nas tampas de saneamento?
- Dizem SPAM?
- Rapariga estúpida! SPAM significa Saneamento do País Autónomo das Maravilhas.
- E porque é que o senhor é um ganso, e não uma lagarta?
- E porque é que tu estás de calças? A realidade não é sempre como a idealizamos!
«A realidade!», murmurei. «Sábio Ganso! A sabedoria assenta num cogumelo... e a realidade é o País das Maravilhas. Que doido poderia pensar que a realidade fosse o Jogo do Ganso?»
sábado, 9 de agosto de 2014
inventei a erebotropia!
Todas as segundas-feiras à noite aparecia um senhor engravatado, pálido e escanzelado, a tentar moer qualquer coisa com um almofariz. Eu usei uns binóculos soviéticos e descobri que ele estava a moer medusas, que trazia num frasco com água. "Que nojo", pensei, e fui ter com ele para perceber aquele desatino. A porta principal do edifício estava escancarada e havia girassóis a crescer e a mexer por todo o lado. Quando cheguei ao laboratório e vi o senhor engravatado de costas, a moer medusas, improvisei:
- Boa noite. Má hora para moer medusas? Ou não?
O homem voltou-se, olhando para os cantos da sala:
- Que é que você quer?... Medusa? Onde está ela? Não vejo, não.
Percebi que o senhor era brasileiro.
- Alforrecas. Isso que o senhor está a moer. Medusas...
- Isso aí?! Isso é água viva!
- E para que é que o senhor quer moer água viva?
- Meu nome é Renato Lineu. Eu fui professor de Botânica, não de Zoologia. Mas meus girassóis, eles têm sede...
- E o senhor rega-os com água viva?
- Depois de moer, ela continua viva. Depois ponho um bocado disso aí.
Mostrou-me um frasco de café solúvel.
- Para quê?
- A água viva moída é para eles ficarem mais do que vivos: eles se mexem sempre.
Ele prosseguiu, mostrando o café
- E não precisam de sol, não. Isso aí, o café, é para eles estarem sempre despertos. Sim! Eu inventei a erebotropia! Eles se movem para as sombras, e não só para o sol.
- É por isso que se estão sempre a mexer?
- Isso mesmo. De noite não se decidem que escuridão devem seguir. E o café ajuda.
quinta-feira, 3 de julho de 2014
uma cabeçada na nuvem
- Viva, Doutor Fangueiro! Então e esses números grandes, já emitem radiação térmica visível?
- Não tão grandes como o seu nariz, ó senhor Gaudêncio Fuças, que continua apagado como o seu cérebro.
- Pronto, pronto... mas diga-me - começou outro - se os números próximos do infinito são incandescentes, isso significa que já viu algum?
- Não - respondeu o Doutor Ilídio Fangueiro imperiosamente. - Mas não é por eu não os ter visto que não existem.
- Certamente que não é por não os ter visto que existem! - fungou o outro.
- O senhor é um ignorante.
- Eu sei. - E o físico torceu o nariz. - E o senhor também, só que não sabe. O facto de ignorarmos coisas insondáveis não justifica que acreditemos na primeira patacoada fantástica que alguém se lembra de pregar!
Furioso, o Doutor levantou-se e deu uma cabeçada na nuvem electricamente carregada. Disse um palavrão, e tropeçou numa teia de aranha, estatelando-se no chão. Um dos narigudos veio dar-lhe a mão:
- Doutor, se me mostrar um número incandescente, eu retiro o que disse.
- Não meta o nariz onde não é chamado!
- Então acha que os números e a incandescência não é assunto dos físicos?
- O Infinito não é! - exclamou.
Uma semana depois, o Doutor Ilídio Fangueiro aceitou o desafio do físico e levou-o ao circo, dizendo que lá ele poderia ver números incandescentes.
- Então o senhor é mesmo teimoso! - concluiu o Doutor Fangueiro. - Não viu que aquele leão atravessou precisamente um número incandescente?
- Ó senhor Fangueiro, o zero não podia estar mais longe do Infinito!
No dia em que fez anos, o Doutor Fangueiro preparou para si mesmo um bolo falacioso e, antes de apagar as velas, lembrou:
- É humanamente impossível apagar um número quase infinito de velas. Por isso números próximos do infinito ardem sempre.
- Parece humanamente impossível abdicar de uma teoria estúpida só porque não há meio de a refutar - narigou o físico intrometido.
terça-feira, 22 de abril de 2014
e evitar incêndios
- Uns tantos metros por mês, para cima, assim, como uma palmeira esgrouviada, já dá pelas nuvens!
- Pois é, imagine! Está tão grande que nunca se viu assim!
Como aquilo me estava a intrigar, perguntei do que falavam. «A antena», responderam-me. Eu lembrei-me que tinham disfarçado uma grande antena de emissão de rádio com uma espécie de árvore artificial desaforadamente grande, que fazia as outras árvores parecerem arbustos rasteiros.
- Quem a viu! E quem a vê! Vá-se lá saber como, continua a subir!
Ao olhar para a porta do café, descobri, num anúncio afixado, que a Freguesia estava a recrutar voluntários para limpar mato da montanha, numa iniciativa que parecia ter como intenção retirar algumas pessoas da pasmaceira e evitar incêndios. Mas havia algo de esquisito no anúncio. Alguém tinha apagado letras do aviso "Procuram-se voluntários" e ficou "Procuram-se otários". O otário que parecia mais ajuizado disse ainda:
- E sabe que há uma luz vermelha a brilhar no topo da árvore?
«É da antena», pensei. O outro retorquiu, muito sério:
- Foram os tipos da MEO que a trouxeram de Belém de propósito.
quarta-feira, 19 de março de 2014
por isso como formigas
quinta-feira, 9 de janeiro de 2014
as suas laranjas tinham um problema
Um "porco limposo" é, segundo a minha avó, aquele que suja o que é dos outros para limpar o que é seu. Ora, esse é o apodo acertado para o vizinho do Tiago Couto, que escreve cartas ao seu primo e costuma sacudir os erros de ortografia pela janela. O Tiago Couto queixou-se que os erros lhe caíam no quintal. Com a sua timidez irremediável, tentava explicar que, em consequência disto, as suas laranjas tinham um problema: "Elas estão madrugas, em vez de maduras. E em vez de darem sumo dão som." Desesperado, explicava que "elas começam a cantar às cinco da manhã e eu acordo com a chinfrineira." O vizinho que sacudia os erros não acreditava, até que o Tiago lhe trouxe um refresco feito com os citrinos do seu quintal contaminado por erros ortográficos. Esqueceu-se de mencionar que cada limão passou a ser "alimão". Então, quando trazia o refresco pelas escadas acima, o sumo sonoro cantava, muito alto, uma canção de Schubert, a famosa "Truta", por confusão ortográfica com o seu estatuto de "fruta".