quarta-feira, 10 de setembro de 2014

o senhor é um ganso

O chão tem buracos em alguns sítios do Porto, por faltarem as tampas de saneamento. Ultimamente, há quem as encontre nas caixas do correio, com a inscrição SPAM gravada na frente da tampa e cartas de jogar à mistura. O problema pode ser atribuído aos cavalheiros do Clube da Lesma, famosos pelo incidente das tartarugas nos parquímetros. O Tiago Couto tinha-me dito que «se meteram noutra alhada por andarem a grafitar o chão da Baixa da cidade do Porto com números de 1 a 67». Mas a realidade é mais complicada do que parece. Na semana passada, eu vi um desses senhores vestidos à século dezanove e a passear um ganso pela trela. Acabei por descobrir que estava a participar no Jogo do Ganso. Decidi seguir as casas daquele tabuleiro invulgar e encontrei a Casa da Morte perto dos Clérigos, donde alguém tinha tirado a tampa do saneamento. Vi sair do buraco um coelho branco, vestido com colete e a olhar para um relógio de bolso, dizendo «Dear, oh dear...»
- Desculpe - comecei. - Eu pensava que isto era o Jogo do Ganso.
- Não me faça perder tempo - respondeu o coelho, apressando-se na direcção da casa 19.
- Mas ajude-me a entender isto! Aquilo ali é a Casa da Morte ou...
Subitamente, o semblante do coelho iluminou-se e ele sorriu como um gato.
- Ah! Mas tu és a Alice! Mas por que raio estás de calças?
Rapidamente tentei lembrar-me se tinha a medicação em dia, mas o coelho interrompeu-me, berrando:
- Vamos, vamos. Não há tempo a perder.
Aquilo estava cada vez mais estranho. Havia ovos partidos e dados espalhados pelo caminho. Na última casa do jogo havia um grupo de cavalheiros a discutir e um ganso a fumar shisha em cima de um cogumelo.
- Desculpai-me a intromissão - declarei, e todos olharam para trás, procurando saber quem eu era.
- Olhem, é a Alice! - exclamou um.
- Não sou Alice nenhuma. Algum de vós me pode dizer quem é que teve o desatino de misturar o Jogo do Ganso com o País das Maravilhas? Isto era suposto ser o Jogo do Ganso.
Eles entreolharam-se e o Ganso falou:
- Rapariga estúpida! Os cavalheiros alugaram à hora o País das Maravilhas...
- Mas isto é a cidade do Porto e estão a estragar o pavimen...
- O País das Maravilhas comprou a cidade do Porto. Tu ainda não reparaste nas tampas de saneamento?
- Dizem SPAM?
- Rapariga estúpida! SPAM significa Saneamento do País Autónomo das Maravilhas.
- E porque é que o senhor é um ganso, e não uma lagarta?
- E porque é que tu estás de calças? A realidade não é sempre como a idealizamos!
«A realidade!», murmurei. «Sábio Ganso! A sabedoria assenta num cogumelo... e a realidade é o País das Maravilhas. Que doido poderia pensar que a realidade fosse o Jogo do Ganso?»

sábado, 9 de agosto de 2014

inventei a erebotropia!

Gerou-se, em Julho deste ano, a suspeita de que alguém ia regar com água quente as teias de aranha do velho edifício esquecido da Faculdade de Farmácia. Da maneira como se acumulava condensação nos vidros das janelas, parecia que só podia ser isso. Mas eu da minha casa tenho uma vista privilegiada sobre o laboratório, e garanto-vos: não é das teias de aranha.
Todas as segundas-feiras à noite aparecia um senhor engravatado, pálido e escanzelado, a tentar moer qualquer coisa com um almofariz. Eu usei uns binóculos soviéticos e descobri que ele estava a moer medusas, que trazia num frasco com água. "Que nojo", pensei, e fui ter com ele para perceber aquele desatino. A porta principal do edifício estava escancarada e havia girassóis a crescer e a mexer por todo o lado. Quando cheguei ao laboratório e vi o senhor engravatado de costas, a moer medusas, improvisei:
- Boa noite. Má hora para moer medusas? Ou não?
O homem voltou-se, olhando para os cantos da sala:
- Que é que você quer?... Medusa? Onde está ela? Não vejo, não.
Percebi que o senhor era brasileiro.
- Alforrecas. Isso que o senhor está a moer. Medusas...
- Isso aí?! Isso é água viva!
- E para que é que o senhor quer moer água viva?
- Meu nome é Renato Lineu. Eu fui professor de Botânica, não de Zoologia. Mas meus girassóis, eles têm sede...
- E o senhor rega-os com água viva?
- Depois de moer, ela continua viva. Depois ponho um bocado disso aí.
Mostrou-me um frasco de café solúvel.
- Para quê?
- A água viva moída é para eles ficarem mais do que vivos: eles se mexem sempre.
Ele prosseguiu, mostrando o café
- E não precisam de sol, não. Isso aí, o café, é para eles estarem sempre despertos. Sim! Eu inventei a erebotropia! Eles se movem para as sombras, e não só para o sol.
- É por isso que se estão sempre a mexer?
- Isso mesmo. De noite não se decidem que escuridão devem seguir. E o café ajuda.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

uma cabeçada na nuvem

A mulher do Doutor Ilídio Fangueiro andava em cuidados, porque ele não saía do escritório há cerca de duas semanas. Quando, finalmente, o Doutor decidiu quebrar o mistério do seu isolamento, anunciou à sociedade uma descoberta extraordinária no âmbito da sua especialidade, as Teo-matemáticas especulativas. Ele afirmava, então, que os números se tornam incandescentes quando se aproximavam do infinito. Logo que vi o Doutor Fangueiro a entrar no Café do Coreto, onde se juntam todos os sábados as famílias chiques da cidade e os físicos mais narigudos da concelho, senti logo que ia haver problemas. O Fangueiro empurrou a porta do café com a barriga e alguém comentou que o Doutor era uma proeza quântica, pois os seus átomos chegavam ao Café do Coreto antes dele próprio. Ao sentar-se, ficou silêncio e uma nuvem electricamente carregada pairava sobre a cabeça do Doutor, mesmo ao lado dos físicos narigudos.
- Viva, Doutor Fangueiro! Então e esses números grandes, já emitem radiação térmica visível?
- Não tão grandes como o seu nariz, ó senhor Gaudêncio Fuças, que continua apagado como o seu cérebro.
- Pronto, pronto... mas diga-me - começou outro - se os números próximos do infinito são incandescentes, isso significa que já viu algum?
- Não - respondeu o Doutor Ilídio Fangueiro imperiosamente. - Mas não é por eu não os ter visto que não existem.
- Certamente que não é por não os ter visto que existem! - fungou o outro.
- O senhor é um ignorante.
- Eu sei. - E o físico torceu o nariz. - E o senhor também, só que não sabe. O facto de ignorarmos coisas insondáveis não justifica que acreditemos na primeira patacoada fantástica que alguém se lembra de pregar!
Furioso, o Doutor levantou-se e deu uma cabeçada na nuvem electricamente carregada. Disse um palavrão, e tropeçou numa teia de aranha, estatelando-se no chão. Um dos narigudos veio dar-lhe a mão:
- Doutor, se me mostrar um número incandescente, eu retiro o que disse.
- Não meta o nariz onde não é chamado!
- Então acha que os números e a incandescência não é assunto dos físicos?
- O Infinito não é! - exclamou.
Uma semana depois, o Doutor Ilídio Fangueiro aceitou o desafio do físico e levou-o ao circo, dizendo que lá ele poderia ver números incandescentes.
- Então o senhor é mesmo teimoso! - concluiu o Doutor Fangueiro. - Não viu que aquele leão atravessou precisamente um número incandescente?
- Ó senhor Fangueiro, o zero não podia estar mais longe do Infinito!
No dia em que fez anos, o Doutor Fangueiro preparou para si mesmo um bolo falacioso e, antes de apagar as velas, lembrou:
- É humanamente impossível apagar um número quase infinito de velas. Por isso números próximos do infinito ardem sempre.
- Parece humanamente impossível abdicar de uma teoria estúpida só porque não há meio de a refutar - narigou o físico intrometido.

terça-feira, 22 de abril de 2014

e evitar incêndios

A meio de uma viagem longa, parei num café em São Salvador da Aramenha e presenciei uma conversa curiosa entre dois homens barrigudos vestidos com coletes reflectores:
- Uns tantos metros por mês, para cima, assim, como uma palmeira esgrouviada, já dá pelas nuvens!
- Pois é, imagine! Está tão grande que nunca se viu assim!
Como aquilo me estava a intrigar, perguntei do que falavam. «A antena», responderam-me. Eu lembrei-me que tinham disfarçado uma grande antena de emissão de rádio com uma espécie de árvore artificial desaforadamente grande, que fazia as outras árvores parecerem arbustos rasteiros.
- Quem a viu! E quem a vê! Vá-se lá saber como, continua a subir!
Ao olhar para a porta do café, descobri, num anúncio afixado, que a Freguesia estava a recrutar voluntários para limpar mato da montanha, numa iniciativa que parecia ter como intenção retirar algumas pessoas da pasmaceira e evitar incêndios. Mas havia algo de esquisito no anúncio. Alguém tinha apagado letras do aviso "Procuram-se voluntários" e ficou "Procuram-se otários". O otário que parecia mais ajuizado disse ainda:
- E sabe que há uma luz vermelha a brilhar no topo da árvore?
«É da antena», pensei. O outro retorquiu, muito sério:
- Foram os tipos da MEO que a trouxeram de Belém de propósito.

quarta-feira, 19 de março de 2014

por isso como formigas


Conheci uma rapariga, licenciada em <censurado>, que se alimentava quase exclusivamente de flores polvilhadas de açúcar extrafino. «É para manter a juventude», dizia ela quando a interrogavam a respeito do estranho hábito alimentar. Porém, esse costume acabou abruptamente com uma conversa nossa:
- Por acaso sabias que há uma cabra com um hábito igual ao teu?
- Desculpa?!
- No cemitério de Fafe há uma cabra que se alimenta das flores das campas.
Não percebi se ela estava melindrada ou confusa, mas rapidamente voltou a conversa contra mim.
- E desculpa lá - começou ela - mas tu sabias que também és uma viciada em manteiga de amendoim?
- Pois sou, eu sei. E também em formigas.
- Formigas? Tu queres passar por excêntrica? É essa a tua ideia?
- Claro que é!
- Não é nada. Tu não és nem queres passar por excêntrica.
- Pois não. Pois não!
Como ela se esforçava por dizer sempre a meu respeito o contrário do que eu pensava ou afirmava, decidi aproveitar-me disso.
- Eu sou pouco inteligente, por isso como formigas.
- Por que estás a dizer que és pouco inteligente? És um génio. E não comes nada formigas.
- Admito. Mas devia comer flores como tu, pois estou a ficar feia de tanto marrar nos livros.
- Feia? Tu és bonita, e não és marrona. Não sei por que queres fazer passar essa ideia de ti.
- Sou desorganizada.
- És organizadíssima! Eu vi a tua gaveta das meias.
- Sou egoísta.
- Como? Egoísta? Tu não tens mesmo a noção do que é ser egoísta. As pessoas egoístas nunca se proclamam egoístas. Tu até és altruísta.
- Obrigada pelos elogios todos desta tarde. Estava verdadeiramente a precisar.
- Não precisavas, só julgas que precisavas.
- Na verdade, eu sou um intelecto genial, uma estampa de beleza, organizada e altruísta, que nem come formigas nem precisa de comer flores.
- Tens é um ego enorme! Necessitas de compensar um sentimento de inferioridade promovendo as tuas qualidades!
- Tens toda razão.
- Sabes, eu só te estava a provocar...
- Olha lá, eu percebi a razão pela qual comes flores. Mas, e o açúcar? É para não morreres, ou é para ficares mais inteligente?
- É claro que é para ficar ainda mais inteligente.
«É claramente uma prioridade», pensei, tentando afastar da mente a imagem de uma cabra a comer as flores dos túmulos.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

as suas laranjas tinham um problema

Um "porco limposo" é, segundo a minha avó, aquele que suja o que é dos outros para limpar o que é seu. Ora, esse é o apodo acertado para o vizinho do Tiago Couto, que escreve cartas ao seu primo e costuma sacudir os erros de ortografia pela janela. O Tiago Couto queixou-se que os erros lhe caíam no quintal. Com a sua timidez irremediável, tentava explicar que, em consequência disto, as suas laranjas tinham um problema: "Elas estão madrugas, em vez de maduras. E em vez de darem sumo dão som." Desesperado, explicava que "elas começam a cantar às cinco da manhã e eu acordo com a chinfrineira." O vizinho que sacudia os erros não acreditava, até que o Tiago lhe trouxe um refresco feito com os citrinos do seu quintal contaminado por erros ortográficos. Esqueceu-se de mencionar que cada limão passou a ser "alimão". Então, quando trazia o refresco pelas escadas acima, o sumo sonoro cantava, muito alto, uma canção de Schubert, a famosa "Truta", por confusão ortográfica com o seu estatuto de "fruta".