sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

A Maldição da Sra. W. Update

Há muitos livros abandonados nos alfarrabistas da cidade, e eu encontrei um que, pelo título, se dava ares de livro de terror, daqueles de casas assombradas. Como a minha mãe é apreciadora do género, eu comprei o calhamaço bolorento para ela. Mal ela me viu a tirar o livro do saco, exclamou:

“Esse Sir William Gates! Ele era cá um filho da mãe dum génio! C’um caraças! Onde foi que descobriste esta edição da Casa dos Microsoft? Ah! Tem os dois, inclui a Maldição da Sra. W. Update? Fabuloso, fabuloso!”

“Eu...”, balbuciei, “bem, pareceu-me o teu género.”

“Estava a ler um livro chato dum Lin… Lineu, Linus, ou Liné, sei lá, um sueco ou finlandês ou o diabo que o leve. Chama-se “A Savana dum Buntu”. É sobre África, e manadas de gnus desenhadas em grutas públicas. É chato, chato, chato. Mas vou acabar. Vai lendo tu esse do… do Sir William.”

Mas que má ideia que ela me deu! Ao abrir o livro na Casa dos Microsoft, demorei imenso a descolar as primeiras páginas. De repente, as janelas de casa abriram-se todas de uma vez, com uma ventania enorme. Tentei fechá-las, mas quando fechava uma, abria outra. Uma luz azul fixava-se no chão, onde se espalhavam códigos em hexadecimal, um clip animado saltava nas paredes e ouvia-se em toda a parte um tambor. Eu pensei que estava a enlouquecer, e chamei a minha mãe.

“Tu ouves isto?”

“O quê?”, disse ela, “estou noutra. Estou neste Lin… Lineu, ou lá o que é. Mas também é sobre cenas africanas.”

“Então não ouves?”

Eu avancei para a Maldição da Sra. W. Update e, ao mudar de página, reparava que faltava alguma coisa, e que tinha de voltar a ler. Grande seca. Então não dava para mudar, porque estava colada. Depois parecia que o enredo se estava a resolver, quando na verdade estava ainda a começar. Eu já estava a perder a paciência, quando a heroína, a Sra. Update, começava a falar de importantes riscos para mim, e eu esperei mais um bocado, porque fiquei com curiosidade. Pensei em deixar o livro a meio, mas quando tive coragem para acabá-lo, cheguei ao fim e faltavam páginas!

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

cabem num diospiro

Ontem vi, na minha rua, uma mulher a fumar no passeio. Olhava muito atentamente para o chão. Aproximei-me e reparei que ela contemplava um diospiro esborrachado.
"Minha senhora..." chamei, mas ela não respondeu.
Olhava para o diospiro.
"Desculpe" - insisti.
Nada. Passei a mão pela frente dos olhos dela, e ela voltou o olhar para mim, ameaçadora:
- Que quer?!
- Bem, desculpe. Pensei que... pensei que estivesse mal...
- Mal, eu? Por que havia de estar mal?
Foi então que vi qualquer coisa a sair do diospiro. Um polegar. Dois polegares, três... contei ao todo cinco e perguntei:
- Quantas mãos cabem num diospiro tão pequeno?
- Não são mãos! Você não vê bem? São gostos!
Um cursor em forma de setinha esvoaçava e zumbia num pedaço nojento de polpa. Subitamente, começaram a cair centenas de diospiros duma nuvem gigantesca. A mulher olhou para mim, radiante:
- Partilharam o meu diospiro! E você? Não vai fazer gosto?
- Eu?! Acha mesmo que vou pôr o meu dedo naquela porcaria?
- Há quem os coma! - exclamou ela.
- Quase toda a gente. Mas eu, francamente, acho de mau gosto comer essa nojice doce e mole que se mistura com dejectos de cão na via pública.
- Só se mistura se você quiser, mas...
- Sabe... - interrompi - o que é que me chateia mais? Sabe?! É que o diabo dessa nuvem incontinente vem despejar os seus diospiros mesmo à porta de minha casa. Não posso abrir a porta. Vem-me logo esse cheiro a... a...
- Aos chinelos do Mark Zuckerberg?
- Eu ia dizer a diospiros.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

comeu um disco duro

Estava eu a vir da casa do meu pai, quando vi, à porta do carpinteiro, um simplório sentado num degrau a desfazer um disco rígido à martelada. Decidi abordá-lo cautelosamente.
- Desculpe. Tem alguma coisa contra discos duros?
- Sim. São duros.
- Sabe que há maneiras mais práticas de destruir informação, não sabe?
- Sim. Comendo-a.
Pensei imediatamente que o homem era burro ou tinha um parafuso a menos.
- O senhor já comeu algum dispositivo de armazenamento?
- Algum dis... quê?
- Se já comeu um disco duro, por exemplo.
- Comi bolachas velhas.
Eu estava espantada com a estupidez do homem.
- Ah. E conseguiu destruir a informação da bolacha?
- Sim.
- Como, então?
- A amílase salivar hidroliza o amido para alfa-dextrina - explicou - que é digerida por glico-amílase para maltose e maltotriose. Estes, com os dissacarídeos também, são hidrolizados por enzimas - maltase, isomaltase, sucrase e lactase - em monossacarídeos... Pode considerar que a destruição de informação consiste na sua decomposição em partes avulsas. Logo, a digestão é um processo destruidor.
De repente senti que o eixo da estupidez se inverteu, mas continuei a conversa.
- Então o senhor está a digerir o disco duro com o martelo?
- Isso é uma falácia de afirmação do consequente. Nem todo o processo destruidor é digestivo.
Então eu concluí: o eixo da estupidez inverteu-se mesmo.
- Então por que está a dar pancada no disco duro?
- Pensava que já tinha explicado. Tenho uma coisa contra discos duros.
- Que coisa? - perguntei, com medo da resposta.
- Um martelo - respondeu, sorrindo de condescendência.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

que os chapéus lhe fugissem

O Matias tem uma colecção de chapéus e um sítio estranho para os guardar: a folhagem densa de uma Magnólia Grandiflora que fica na rua Gonçalo Sampaio. Andava sempre preocupado, por medo de que os chapéus lhe fugissem com a ventania. Todos os dias este senhor ia almoçar à Marisqueira mesmo ali em frente. Quando, numa sexta-feira de mau tempo, o empregado de mesa disse: "Este robalo é de se lhe tirar o chapéu", o Matias saíu esbaforido do restaurante e foi à procura do robalo no meio da tempestade. Quando viu um dos seus chapéus a voar sem robalo sobre os jazigos do cemitério de Agramonte, diz-se que rogou pragas tão blasfemas que o senhor padre que andava por lá o afastou com pontapés e água benta. Consta que a colecção do Matias reapareceu, intacta, pendurada na magnólia e, por incrível que pareça, não foi avistado um único peixe a repor os seus chapéus. Eu não teria acreditado nesta história se, quando fui àquele restaurante, não me tivessem servido um robalo - de se lhe tirar o chapéu.

quarta-feira, 11 de março de 2015

espalhados pela atmosfera

Passei por um vendedor de nuvens engarrafadas que me queria impingir uma nuvem.
Boa tarde! Já conhece as nossas variedades frutadas de Cumulonimbus Exoticus, uma colheita argentina das tempestades de 2009?
- Não, muito obrigada, não estou interessada. Não gosto de nuvens.
- Mas há-de gostar das nossas, que são fofas e estaladiças, aromatizadas com ventos de framboesa e com um brilho de chuva celestial.
- Não gosto de tomar nuvens, sejam quais forem.
- Mas todos as pessoas nascem a gostar de nuvens! São como o sol. Quando nasce, nasce para todos!
- Já lhe disse que não gosto!
- Então já provou todas?
- Não era possível.
- Então como sabe que não gosta das nossas?
- Por generalização.
- A generalização é falível, e é logicamente falacioso inferir o universal a partir do partic...
- Deixe-me em paz com as lógica das nuvens, ó... ó nefelibata pomposo, charlatão autodidacta!
Eu reparei que, numa daquelas garrafas, qualquer coisa começou a relampejar. Um diabo em mim exclamou “Agita, agita!”, mas o santo Agostinho, que normalmente equilibra estes maus instintos, murmurou: “Nada faças que possa causar prejuízo, nem que te divirta muito”. No entanto, o diabo continuava: “Agita, agita, agita!”, e eu peguei na garrafa, para grande espanto do vendedor filosófico, e pus-me a abaná-la espalhafatosamente. O resultado era previsível: soltou-se a rolha e um raio subiu aos céus, perturbando a paz desta Primavera precoce com uma tempestade brutal.
- Já viu o que fez? - perguntou o vendedor, molhado como um pinto.
- Já vi, sim senhor. O senhor não gosta de chuva celestial?
- Gosto de a tomar, mas de...
- E de nuvens estaladiças?
- É diferente...
- E de ventos de framboesa?
- Gosto! Gosto de os provar! Mas não gosto deles espalhados pela atmosfera!
- Isso quer dizer que, para si, gosta de nuvens, mas cá fora é tudo sol! Você é um hipócrita e um egoísta.
- Então porquê? - interrogou o vendedor, furioso.
- Porque quando as nuvens nascem, nascem para todos!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

o sítio do salgueiro-chorão

Toda a gente que tem febre em Cedofeita parece ter aderido à moda de raspar o salgueiro morto na sombra dos guarda-chuvas. Tudo começou com um salgueiro-chorão que chovia mais do que as nuvens. Quem quisesse evitar as suas pingas, deveria atravessar a estrada e passar pelo passeio oposto, povoado de adolescentes que falavam e riam como bárbaros de telemóvel e mochila. Por isso, as pessoas de bom gosto optavam pelo duche do salgueiro e facilmente se constipavam, resolvendo obviamente o problema fazendo um remédio de casca de salgueiro que tratava a constipação e fazia a árvore chover ainda mais.
Esta planta eventualmente acabou por se arruinar com o vício de chover sobre as suas próprias raízes. Um senhor simpático, para salvar a árvore, plantou quatro guarda-chuvas no chão para tentar desviar a água das raizes do pobre salgueiro. Isso não adiantou, porque a planta acabou por morrer. Os guarda-chuvas, esses, pegaram e cresceram, e agora as pessoas que se querem abrigar da chuva vão para o sítio do salgueiro-chorão.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

o senhor é um ganso

O chão tem buracos em alguns sítios do Porto, por faltarem as tampas de saneamento. Ultimamente, há quem as encontre nas caixas do correio, com a inscrição SPAM gravada na frente da tampa e cartas de jogar à mistura. O problema pode ser atribuído aos cavalheiros do Clube da Lesma, famosos pelo incidente das tartarugas nos parquímetros. O Tiago Couto tinha-me dito que «se meteram noutra alhada por andarem a grafitar o chão da Baixa da cidade do Porto com números de 1 a 67». Mas a realidade é mais complicada do que parece. Na semana passada, eu vi um desses senhores vestidos à século dezanove e a passear um ganso pela trela. Acabei por descobrir que estava a participar no Jogo do Ganso. Decidi seguir as casas daquele tabuleiro invulgar e encontrei a Casa da Morte perto dos Clérigos, donde alguém tinha tirado a tampa do saneamento. Vi sair do buraco um coelho branco, vestido com colete e a olhar para um relógio de bolso, dizendo «Dear, oh dear...»
- Desculpe - comecei. - Eu pensava que isto era o Jogo do Ganso.
- Não me faça perder tempo - respondeu o coelho, apressando-se na direcção da casa 19.
- Mas ajude-me a entender isto! Aquilo ali é a Casa da Morte ou...
Subitamente, o semblante do coelho iluminou-se e ele sorriu como um gato.
- Ah! Mas tu és a Alice! Mas por que raio estás de calças?
Rapidamente tentei lembrar-me se tinha a medicação em dia, mas o coelho interrompeu-me, berrando:
- Vamos, vamos. Não há tempo a perder.
Aquilo estava cada vez mais estranho. Havia ovos partidos e dados espalhados pelo caminho. Na última casa do jogo havia um grupo de cavalheiros a discutir e um ganso a fumar shisha em cima de um cogumelo.
- Desculpai-me a intromissão - declarei, e todos olharam para trás, procurando saber quem eu era.
- Olhem, é a Alice! - exclamou um.
- Não sou Alice nenhuma. Algum de vós me pode dizer quem é que teve o desatino de misturar o Jogo do Ganso com o País das Maravilhas? Isto era suposto ser o Jogo do Ganso.
Eles entreolharam-se e o Ganso falou:
- Rapariga estúpida! Os cavalheiros alugaram à hora o País das Maravilhas...
- Mas isto é a cidade do Porto e estão a estragar o pavimen...
- O País das Maravilhas comprou a cidade do Porto. Tu ainda não reparaste nas tampas de saneamento?
- Dizem SPAM?
- Rapariga estúpida! SPAM significa Saneamento do País Autónomo das Maravilhas.
- E porque é que o senhor é um ganso, e não uma lagarta?
- E porque é que tu estás de calças? A realidade não é sempre como a idealizamos!
«A realidade!», murmurei. «Sábio Ganso! A sabedoria assenta num cogumelo... e a realidade é o País das Maravilhas. Que doido poderia pensar que a realidade fosse o Jogo do Ganso?»