quinta-feira, 22 de novembro de 2012

o mistério do arco-íris torto


Eu passeava na rua de Cedofeita. Na ausência de distracções mais cativantes, decidi escutar atentamente os fragmentos de conversa das pessoas por quem passava. Pelo conteúdo das conversas, tive boas razões para me alarmar, mas mantive a calma.
O primeiro grupo foram dois jovens, um rapaz com dread locks e brincos, de mãos dadas com uma gótica vistosa. Ela disse-lhe: «Então o céu abriu-se e caiu de lá um telefone....» A seguir, estavam três polícias em frente à esquadra de Cedofeita, e um, gesticulando, começa a exclamar: «Quando eu finalmente atendi a maldita chamada, o chefe disse que recolhesse as nuvens...» Logo depois, vejo um homem de boné a descrever uma curvatura com o braço, dizendo «...porque o arco-íris estava torto...» Mas o mais estranho foi ouvir uma freira a murmurar para a outra: «A Criação comprometida...» E a seguir ouço as palavras, vindas de dentro da Óptica de Cedofeita: «...por um erro de refracção...» Ao longe, vejo uma mulher a barafustar ao telefone, com o dedo no ar: «Ninguém pode saber! Quem souber...» E, parado junto a uma porta, estava um homem a apontar com o dedo para a planta de uma casa: «Tem de ser eliminado.»
Habitualmente, os fragmentos que apanhamos na rua são desconexos. Mas estes comportavam uma mensagem muito consistente: «O céu abriu-se. Caiu de lá um telefone e, quando eu atendi a maldita chamada, o chefe disse-me que recolhesse as nuvens, porque o arco-íris estava torto. A Criação comprometida por um erro de refracção! Ninguém pode saber! Quem souber tem de ser eliminado.»
Eu desesperei. Fui para casa e, qual o meu espanto, quando vejo ursinhos carinhosos a escorregar por um arco-íris através da minha janela do quarto. «Vieram matar-me!», pensei, em pânico absoluto. Fugi para dentro do quarto de banho, tranquei a porta e esperei. O que é que eu podia fazer? Foi então que me lembrei que só Newton me podia salvar. Rezei pela sua aparição, mas, desgraçadamente, apareceu-me Leibniz. «Se não me esperavas, não falasses no criador do cálculo infinitesimal!» Tive de aturar o Leibniz e suas Mónadas até ter uma ideia. Peguei nas Mónadas de Leibniz, ensaboei-as e atirei-as todas aos ursinhos, que escorregaram nelas e se espatifaram no chão. Então eu fugi da Brigada do Arco-Íris e encontrei um telefone a tocar, pendurado no ramo de uma árvore. Atendi e uma voz disse: «Come muito queijo!» Assim fiz. Fiz de conta que, graças à aplicação da duvidosa sabedoria popular, me esqueci de todo o episódio. Mas, quando eles souberem que ainda me lembro de tudo, terei mais ursinhos carinhosos a tentar matar-me, sem a salvação de Newton, para explicar que o mistério do arco-íris torto não é um erro da Criação.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Artigo redigido com criatividade, aguçado dom de observação, fino sentido de humor e qualidade literária. Sinceras felicitações!

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