Desde que, recentemente, a minha
memória me tem vindo a trair, tenho tomado nota de incidentes
curiosos, os quais, após a consulta dos apontamentos, são objecto
da minha redobrada admiração. Uma das minhas notas faz constar que
há uma inimizade entre dois irmãos que vivem clandestinamente na
igreja de São Martinho de Cedofeita. Ora, segundo o que anotei, eu
terei visto o mais alto e esganiçado a sair da igreja, perseguindo o
outro com uma faca de peixe. O perseguido, com um peixe no regaço,
fugia do seu perseguidor e levava-lhe a vantagem de ir de patins. E
há uma peripécia ainda mais pitoresca, no meu registo, onde pode
ler-se: «E foi então que o patinador largou o peixe e o esganiçado
escorregou nele e se estatelou no chão, pronunciando um vocábulo
grosseiro. No dia seguinte, de manhã, o patinador entrava na igreja
com os patins no regaço. A conclusão lógica a retirar seria que o
esganiçado o seguia com peixes nos pés e comeria os patins do outro
com uma chave de fendas.» E o meu registo deste episódio pára aí.
Dá-se o caso de eu discordar desta conclusão e preferir a
observação empírica à padronização lógica dos eventos. Então
aproximei-me da igreja e vi o esganiçado a dançar, com barbatanas
de mergulho calçadas, em torno de uma fogueira onde assavam os
patins do patinador, que não andava por ali. Finalizei, então, o
meu registo com um elogio à metodologia de padronização lógica,
coroando-o com o seguinte raciocínio: os patins estão para os
peixes, como chaves as de fendas para as facas de peixe. Logo, se
multiplicarmos os patins pelas facas e dividirmos pelos peixes,
obteremos o valor de X: as chaves de fendas.