domingo, 25 de março de 2012

A tocar saxofone na banheira

Desde meados de Março que se instalou um indivíduo peculiar no 3 Direito. A Dona Teresa, do rés-de-chão, disse-me que ele tem o mau costume de estacionar o seu carocha no jardim, em cima das dioneias do senhor António. Irritado por ver o carro outra vez em cima das suas plantas, o senhor António disse-me que gostava que elas comessem os pneus ao carocha do vizinho. Ele acrescentou que, se as plantas já comeram vespas, também podiam comer carochas. Eu tive de lhe explicar que as vespas motorizadas, tal como a carocha do vizinho, não eram insectos e, mesmo que fossem, eram grandes demais para as suas dioneias. Ele decidiu relatar o dia em que viu uma delas a comer um aranhiço. Eu lembrei-lhe que os aranhiços cairam em desuso, porque as bicicletas têm um eixo mais estável e uma tracção mais eficiente. Despedi-me cordialmente e, no dia seguinte, acordei subitamente de um sonho sobre elefantes: era o novo vizinho, que devia estar novamente a tocar saxofone na banheira. O som viajava através da canalização e das condutas de ar, esganiçado e distorcido, e chegava ao meu apartamento como uma cólica musical. Eu fui ter com o vizinho e enganei-me na porta. Atendeu o senhor António, todo encharcado com uma planta da família das nepenthes na mão. "Não faça caso do barulho", pediu. "É que as minhas plantas estão desafinadas." Minutos depois, fui ter com o outro vizinho, que abriu a porta devagar e disse: "Desculpe. Comprei o meu saxofone faz amanhã duas semanas e adivinhe! Está entupido com carochas, vespas e aranhiços." Eu pensei para comigo: "Se cabem carochas no seu saxofone, por que raio continua ele a insistir em estacionar o seu carro no jardim?" Depois senti o desconsolo de quem pensou um disparate.

sábado, 10 de março de 2012

vi rebentos de cânhamo

Eu já desconfiava que algo estava errado quando vi rebentos de cânhamo a sair do cabelo da tia Eulália. Então decidi investigar e acabei por perceber a origem do prodígio. Quando a tia usou uma peruca primeira vez, ela percebeu que lhe assentava mal. A tia é baixinha e tem uma cabeça pequena demais. Ela tentou prender a peruca com ganchos, mas caía-lhe. Tentou encher com umas esponjas pequenas, mas levantava-se-lhe a cabeleira. Então, como tinha uns canários, colocou uma meia de lycra cheia de comida de pássaro debaixo da peruca e andou assim algum tempo, até lhe começarem a crescer plantas na cabeça. Há pouco tempo, um primo meu, que sempre foi um pouco desassizado, pediu autorização à tia para cortar um pedaço de cânhamo da peruca e alegou que era porque queria fazer um charro para ficar "alto". A tia não percebeu e exclamou "se fores como a tua mãe nunca serás alto!" Furiosa, atirou a cabeleira pela janela, e ela caiu em cima da haste da bandeira do CDS-PP. Ainda lá está. Correm rumores pela cidade de que aquilo é uma provocação dos anarquistas, mas eu sei que não é.

quinta-feira, 1 de março de 2012

moscas e impressoras

Quase toda a gente sabe que algumas impressoras são dignas de serem consideradas a espécie mais caprichosa e irritante de entre os aparelhos informáticos. Luzinhas que piscam, arranques e soluços, barulho frenético de rolamentos, chiados hesitantes e páginas vomitadas com hieróglifos, e um único botão (em alguns casos) para controlar todas as funções.
Ora, eu tenho uma destas máquinas lógicas que decidiu imprimir moscas para levar mais longe o desafio de me irritar. Troquei recentemente um toner e imprimi uma página de teste. Além de estar monocromática, saiu com uma frase enigmática no canto superior esquerdo:

SPL-C ERRORNon, laissez-la parler!
Laissez-la parler.
C'est Agamemnon qui l'inspireINCOMPLETE SESSION BY TIME OUT


Eu deixei o que estava a fazer e aproximei-me da máquina. Parecia tudo normal, se a palavra “normal” se pode aplicar às impressoras. De repente, ela recomeçou a imprimir, muito lentamente e eu presumi que estava a sair algo a cores. Já não era mau. Quando voltei a página, constatei com algum nojo que estava cheia de moscas a cores e com alta definição. Era óbvio que a máquina estava no gozo. Ela sabe que há duas coisas que me irritam: moscas e impressoras. Eis a combinação perfeita. Desliguei a máquina no interruptor, voltei a ligá-la e ela deu um ronco. Eu tinha um documento sobre Sartre para imprimir e, antes de o mandar para imprimir ouvi um barulho anacrónico. Era o barulho das impressoras de agulhas. Não há dúvida que a impressora estava a fazer uma regressão birrenta. Imprimiu, com pontinhos, a seguinte mensagem:

INTERNAL ERRORChère Eléctre!PLEASE USE THE PROPER DRIVER

Eu decidi cancelar a impressão mas despejou ainda algumas páginas em branco e, no rodapé da última, aparecia escrito, ainda ao estilo das impressoras matriciais:

Pourquoi refuses-tu mon aide?PAGE 4

Eu achava que já tinha visto tudo, quando tive a impressão de ver sair da impressora uma mosca. Por momentos pensei que, se visse de perto, constataria que era uma mosca francesa. “Que disparate!”, pensei logo a seguir: “As moscas não têm nacionalidade. E não saem moscas de dentro de impressoras.” Nesse preciso momento, vejo no canto inferior direito do ecrã uma mensagem a dizer:

One of the USB devices attached to this computer has malfunctioned, and the system does not recognize it. For assistance in solving this problem, click this message.

Eu cliquei, e apareceu a mensagem:

Que nous importent les mouches?Click finish to close the wizard.

A impressora estava a transmitir ao computador as suas manias. Aquele disparate tinha de acabar, por isso decidi desligar o computador e sair de casa para tomar um café que me fizesse esquecer que tinha uma impressora neurótica. Quando cheguei a casa tive de atravessar uma nuvem de moscas para chegar ao computador e, no chão, encontrei uma página cuidadosamente impressa num tipo de letra serifado em tamanho grande:

Et l'angoisse qui te dévore, crois-tu qu'elle cessera jamais de me ronger? Mais que m'importe: je suis libre.

A impressora nunca mais voltou a trabalhar.