quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

toda a comida era de papel


No dia em que fui ao hospital visitar o tio Jorge encontrei, logo à entrada do edifício, um elefante a tocar corneta e outro a atirar areia para os olhos das pessoas que entravam. As escadas estavam escorregadias, cheias de verniz acabado de aplicar. Logo à entrada, ouvi aplausos vindos de um pequeno grupo que se juntara à volta de uma mosca. Reparei que se tratava da apresentação de um livro. No cartaz, podia ler-se: «O corpo do abismo: a (pre)ocupação do espaço vazio». A mosca zumbia eloquentemente na frente de um microfone. Eu não percebia os zumbidos, mas todos os admiravam, acenando a cabeça de assentimento reverente, e colocando a mão no queixo, com um ar muito intelectual. Logo a seguir, decidi aproximar-me de uma fila de doentes. Entendi que se tratava da fila de uma cantina insólita, onde toda a comida era de papel. Eu até podia ler as letras pequenas no papel amachucado que eles tomavam por bananas e bifes. Foi então que decidi sair dali, para o terceiro piso onde estava o tio Jorge. Só que, ao entrar, reparei que estava transformado num museu de arte contemporânea, sem janelas e com quadros em branco cheios de títulos estranhos: «Relevos da Perplexidade», «Convergências de Sentido», etc. Havia apenas uma escultura, que era constituída por uma porção de excremento de bovino dentro de um cubo de vidro. O título era «Deconstruction of Deconstructions or the Beauty of Bullshit». Genial. Uma força intoxicante apoderou-se de mim e eu fui imediatamente, a correr, ter com o tio Jorge. Quando ele me viu, a primeira coisa que disse foi:

- Há uma epidemia no hospital.
- De quê? - perguntei.
- Moscas. Há moscas em toda a parte.
- Mas isso é por causa daquela escultura... – disse eu.
- Não! São moscas que falam e contaminam tudo! Moscas zumbidoras que reclamam autoridade sobre tudo o que temos na cabeça, incluindo os nossos cabelos. Por que tu julgas que estou careca? E até o cérebro e o nariz...

Eu achei que talvez fosse sensato levar o tio Jorge ao serviço de psiquiatria, e fomos os dois. Mas quando chegámos, percebemos que não havia vivalma no serviço. Apenas encontrava, por todo o lado, latas de insecticida. Muni-me delas, despedi-me do tio Jorge e espalhei mata-moscas por todo o hospital até ele cheirar mais a insecticida do que a esturro. As moscas cairam todas ao chão, o zumbido desapareceu e, como que por magia, apareceram janelas no lugar dos quadros em branco. À saída do hospital, vi um médico a dizer para o outro: «A epidemia está controlada, mas alguns dos danos cerebrais são irreversíveis. A Síndrome de Arrogância Letrada não tem cura, mas a Intelectopatia Pomposa fica de tal modo controlada, que eles poderão, em breve, comer comida normal.»

domingo, 17 de fevereiro de 2013

luzes verdes ao lado do ketchup

Desde que mudei a lâmpada do frigorífico, que vejo auroras boreais perto da prateleira de cima onde estão os molhos. Eu acho que a radiação saiu do congelador e infiltrou-se nas regiões mais a sul. O campo electromagnético criado pelo ímans da porta do frigorífico afasta-se quando a abro, e vejo brilhar umas luzes verdes ao lado do ketchup. Contra avisos em contrário, eu decidi colocar todas as minhas bananas no frigorífico, por uma razão muito singular: queria mesmo saber se as baratas alemãs sobrevivem à radiação-banana (ou radiação gama) e ao Inverno Nuclear. Em consequência da minha experiência, a geração seguinte de baratas era mutante e os molhos ficaram todos radioactivos. Descobri uma barata ucraniana que organizou uma revolução, mas, pouco depois, as baratas israelitas deram sete voltas ao frigorífico, puxaram das cornetas e ele desabou. Mais tarde percebi que tiveram o auxílio de um míssil balístico Jericho III, que aumentou tanto os níveis de radioactividade da minha cozinha, que eu passei a ver as auroras boreais na sala. A única coisa que explica que eu tenha sobrevivido à radiação é a minha fantasia de chumbo do Gregor Samsa, que eu conservo desde a minha primeira leitura de Kafka.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

lições de Grego no Liceu

A Dona Graciete Lopes espirrava sempre à saída da Igreja de Cedofeita. Mas isso é natural, pois há muita gente que espirra com a luz. Todavia, desde que o padre leu uma passagem do Apocalipse, a Dona Graciete Lopes só consegue descansar verdadeiramente em noites de lua nova. "Eu sou o Alfa e o Omega". A Dona Graciete, que ainda é do tempo das lições de Grego no Liceu, pensou que isso significava: "Eu sou o A e o Z". Porém,a senhora não frequentou Lógica e, por isso, cometeu uma falácia da ilícita menor que lhe viria a dar insónias. Mas insónias tão grandes que nem o Kierkegaard imaginava. "Se Jesus é A e Jesus é Z, A e Z são a mesma letra". A lua espreitava pela sua gateira, e a Dona Graciete começava a espirrar. "Dr. Sousa", disse ela ao médico: "eu espirro com a lua." O Dr. Sousa lembrou que a astrologia era uma falsa ciência, ao contrário da astronomia, que era o seu passatempo favorito. "Lembre-se", começou o Dr. Sousa, "que o Alfa é o azimute. O Omega é simplesmente a longitude do nódulo ascendente." Intrigada, a Dona Graciete perguntou o que é que Cristo e os espirros tinham que ver com aquilo. "Nada", disse o médico. "A senhora tem apenas uma condição presente em um quarto da população: Reflexo Fótico." O Dr. Sousa receitou-lhe Alprazolam, suspeitando que uma certa ansiedade hipocondríaca presidia a toda aquela confusão. No domingo a seguir, o padre citou o Evangelho segundo São João, no qual Jesus diz: "Eu sou a luz do mundo". Dona Graciete, confusa de todo, foi perguntar ao padre se Jesus era a lua. Para seu grande alívio, o padre respondeu: "Não, minha filha. A Bíblia não é para levar à letra." Sem saber de que letra falava o senhor padre, Graciete fez um asterisco na gateira do seu quarto e assinalou no rodapé, com marcador: "Jesus Cristo não é Alfa nem Omega, pois não é para levar à letra".