sábado, 28 de dezembro de 2013
nuvens de importância
Uma rapariga interrogou-o finalmente, cruzando os braços:
- Então, perdoe-me, mas... o que é? O que é isso?
Afectando ares e nuvens de importância, o senhor Casimiro explicou:
- Isto... isto é um quadro. Uma obra prima de um pintor surrealista, só o nome do artista me escapa agora...
- Magritte? - inquiri, sem saber no que me estava a meter.
Satisfeito e convencido de que eu acreditava que ele estava a fumar uma pintura de Magritte, o senhor Casimiro começou a dizer a toda a gente que eu provara que ele tinha razão e que «até tinha adivinhado o nome do autor da pintura».
Uma semana depois, o senhor Casimiro foi constituído suspeito por causa do incêndio do museu, no qual foram consumidas pelas chamas quatro obras-primas. Interrogaram-me a respeito das borboletas que eu tinha em casa, ao que eu respondi:
- Tenho, pois, mas nunca as fumei. Aliás... - hesitei - não são borboletas. São papillons, umas folhinhas de uma droga, papilio sativa, que se atam à volta do pescoço para fazer laçarotes pomposos.
Os polícias abalaram, confusos, enquanto um deles sussurrava audivelmente para o outro:
- Eu sei que ele é doido, mas não reparaste, no dia do incêndio, que cheirava a borboleta?
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
que acompanha o marisco
domingo, 10 de novembro de 2013
cogumelo elevado ao pato
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
desta... árvore?
- Como é que conseguiste isto? - perguntei, como se não soubesse.
- Entrei na minha cabeça. Não é fácil, porque é uma recursão. No momento em que fiquei consciente da minha auto-consciência, vi um ninho de espelhos dentro de espelhos com uma sanita luminosa ao centro.
- Que raio? Mas isso significa que tens uma auto-estima paradoxal agravada por processo narcísico recursivo? - perguntei eu para dar ares de quem percebe muito daquilo.
- Não, não... Não! Olha bem para o que o meu terapeuta fez quando eu lhe disse para não tomar nota...
- Uma árvore de Natal? Desenhou uma árvore de Natal?
- Não é uma árvore de Natal! É uma sanita!
«Ora bem», pensei eu: «O Tiago enlouqueceu de vez.» Examinei bem o desenho e era uma árvore de Natal com as raízes de fora.
- Tiago - sussurrei em tom de confidência.- Fazes ideia da razão pela qual o teu terapeuta desenhou uma sanita?
- Claro. Faltou a energia e ele precisava de luz.
- Das lâmpadas de Natal desta... árvore?
- Meu caro amigo! Vês coisas onde elas não existem!
- Então?
- A luz vem dos medicamentos anti-psicóticos que eu deitei pela sanita. Dizem que dão lucidez.
- Lucidez e luz não são o mesmo - comentei cepticamente.
- Ah! Mas têm a mesma raiz!
Então eu olhei para o desenho da árvore de Natal com raízes de fora. Apaguei as lâmpadas do desenho, encolhi os ombros e murmurei, para mim própria: «Até eu fazia melhor.»
quinta-feira, 19 de setembro de 2013
cenoura com IVA
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Da elevação dos nabos
Foi negada ao senhor Paulo Vasconcelos a possibilidade de plantar nabos nas zonas do prédio definidas como comuns, como é o caso do canteiro do átrio da entrada. Com o argumento de que o elevador não tem uma localização definida (porque sobe e desce), nem comum (porque só serve um andar de cada vez), o senhor Vasconcelos decidiu plantar os seus nabos no chão do elevador. Para grande surpresa dos condóminos, quando os nabos começaram a crescer, foram disputados por outro senhor, o professor africano Bonga-Ponga, que faz adivinhação com conchas e vende amuletos contra o mau-olhado e a impotência. Ele declarava que os nabos eram seus porque param no terceiro andar. O professor Santos Bizarro, doutor em mecânica quântica, concluiu que não é possível declarar a quem pertencem os nabos, porque a posição e a velocidade não podem ser apreendidos em simultâneo e dependem do andar do sujeito observador. Quando mudaram a equipa de inspecção da Efacec para a Cosmos Society & Engineering, os nabos proliferaram para todo o prédio, numa contaminação epidémica que se diz esta na origem da elevação dos nabos ao estatuto de condóminos, entre os quais está o senhor Vasconcelos. Este declara estar envolvido num paradoxo temporal sem o qual não poderia existir. O senhor Vasconcelos só não percebeu ainda que ele próprio não existe, pois nunca conseguiu fazer medrar nabos no chão do elevador.
quarta-feira, 12 de junho de 2013
o valor de X: as chaves de fendas
quinta-feira, 9 de maio de 2013
a uma vocação
- Que cruéis! Por que não vos dedicais antes à costura? - perguntei.
- Porque a costura é para vós, humanos, que sangrais e rebentais de piedade!
"Que diabo de criaturas mais arrogantes.", pensei. Então fui remexer no lixo e encontrei o balão murcho que eu tinha deitado fora. Apanhei uma agulha no meio da multidão - ela picou-me em protesto - e cosi o balão, tornei a enchê-lo, desta vez com hélio, e soltei-o no ar. Vi-o subir em liberdade. Quando abri a caixa de correio, as agulhas protestavam. "Quereis rebentar balões livres, é isso?", perguntei cinicamente. "Quereis voar? Enchei-vos de hélio! Se souberdes como!" Então, com uma fúria colérica, liguei o meu aspirador portátil e suguei as agulhas. Uma delas, ligeiramente mais larga, não se despegava da superfície da caixa de correio.
- Tu tens a mania que és diferente? - inquiri.
- Não... Eu vivi numa bússola e perdi o Norte. Alistei-me, mas não quero matar. A minha vocação perdeu-se.
- E que vocação era essa?
- Orientar os que são livres e percorrem a superfície da Terra.
- E o céu? - perguntei.
- Santa ingenuidade! O céu? Os balões acabam todos por cair, os homens acabam todos por morrer. Mas enquanto descrevem o seu trânsito breve na superfície da Terra, eu conduzo-os para um destino qualquer. Mas, oh! Isso era quando eu vivia numa bússola. Agora vivo num exército que não sabe marchar - quanto mais voar! Deixe-me - suplico-lhe - deixe-me estar aqui. Pelo menos, na minha solidão e na minha velhice, poderei tocar nas cartas dos seus amigos distantes e ter, assim, um vislumbre de outros lugares. No cárcere voluntário de uma caixa de correio, eu, agulha de uma bússola perdida, não lamentarei mais o meu destino, pois fui sempre o destino dos que se cruzaram comigo. Deixe-me estar só, longe desse exército furioso e sanguinário.
- Está bem. - respondi. - Desde que não me abras a correspondência.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
toda a comida era de papel
domingo, 17 de fevereiro de 2013
luzes verdes ao lado do ketchup
Desde que mudei a lâmpada do frigorífico, que vejo auroras boreais perto da prateleira de cima onde estão os molhos. Eu acho que a radiação saiu do congelador e infiltrou-se nas regiões mais a sul. O campo electromagnético criado pelo ímans da porta do frigorífico afasta-se quando a abro, e vejo brilhar umas luzes verdes ao lado do ketchup. Contra avisos em contrário, eu decidi colocar todas as minhas bananas no frigorífico, por uma razão muito singular: queria mesmo saber se as baratas alemãs sobrevivem à radiação-banana (ou radiação gama) e ao Inverno Nuclear. Em consequência da minha experiência, a geração seguinte de baratas era mutante e os molhos ficaram todos radioactivos. Descobri uma barata ucraniana que organizou uma revolução, mas, pouco depois, as baratas israelitas deram sete voltas ao frigorífico, puxaram das cornetas e ele desabou. Mais tarde percebi que tiveram o auxílio de um míssil balístico Jericho III, que aumentou tanto os níveis de radioactividade da minha cozinha, que eu passei a ver as auroras boreais na sala. A única coisa que explica que eu tenha sobrevivido à radiação é a minha fantasia de chumbo do Gregor Samsa, que eu conservo desde a minha primeira leitura de Kafka.