sábado, 30 de junho de 2012

uma luxuosa edição bilingue da Divina Comédia

Eu tive de ir até ao Estádio do Dragão de metro, e a carruagem estava praticamente vazia. De repente, ouvi uma música arranhada que me fazia lembrar os discos antigos do cãozinho que diziam "His Master's Voice" e que a minha avó punha na grafonola enquanto segurava na agulha. Percebi, então, que alguém estava a ouvir uma ópera de Wagner muito alto com headphones. Voltei-me para trás e vi um "guna" da pesada com boné ao lado, sapatilhas desapertadas e correntes douradas por cima de uma camisa foleira. Estava absorto na música de Wagner e agitava as mãos e a cabeça com verdadeiro entusiasmo. Reparei que, ao lado dele, estava sentado um rufia com rabichinho na nuca e brincos, ostentando uma t-shirt onde se podia ler um palavrão em esperanto. Estava a ler atentamente o "Curso de Linguística Geral" de Saussure. Como percebeu que eu estava a olhar para ele, levantou o queixo, abordando-me de modo brusco e pouco cortês: "Tás a olhar?!" - e continuou a ler. Quando o metro parou no Campo 24 de Agosto, entrou um grupo de raparigas adolescentes, e com elas entraram os seus risinhos e o cheiro a pastilha elástica. Duas delas mexiam no telemóvel. De repente ouço, muito alto: "Toma lá! Rainha para e4!" As outras estavam a falar de um "gajo giro" que eu acabei por perceber que morreu durante um surto de cólera em Berlim, há cerca de 180 anos. "A dialéctica do Espírito culmina obviamente no Estado Prussiano", diz uma, ao que a outra continua "felizmente, o Estado Prussiano morreu de cólera" - e riem-se. "Não é bem assim", diz outra. Mas, subitamente, a que estava a jogar xadrez no telemóvel grita "Xeque-mate!" O metro pára e entra um homem com mau aspecto, a barba hirsuta, a roupa suja, as unhas negras e um cheiro insuportável a vinho. De repente, tira do saco uma luxuosa edição bilingue da "Divina Comédia" e começa a tirar notas num caderno com uma caneta de tinta permanente. Eu saí na última paragem, que é a do Estádio do Dragão, mas eles não saíam do metro. Fiquei intrigada, porque o destino daquele veículo era aquela paragem. Então eu voltei a entrar e perguntei a alguém "é a última paragem deste comboio, não é?" e responderam-me: "Teoricamente". "E na prática?" - perguntei. "Na prática ainda não saímos da paragem de Carolina Michaelis". Acordei. Tinha adormecido no metro. Mas estava outra vez um guna atrás de mim a ouvir Wagner muito alto e eu tive medo de estar novamente a sonhar. Fugi do metro, desci a rua Augusto Luso e só parei no Liceu Rodrigues de Freitas. Subitamente sinto uma mão no ombro, e estavam a pedir-me o cartão andante do metro: "Já validou?" - inquiriu o revisor. Ouço um gritinho, algures: "d3 para e4, toma peão perdido en passant!"

quinta-feira, 21 de junho de 2012

mesmo o fungo filosofal se propaga por esporos

Dizem que é por causa de um fungo das linhas, que os telefones da Faculdade de Letras começaram a avariar. O dito fungo começou a disseminar-se a partir do Departamento de Filosofia. Há quem declarasse que era causado pela humidade dos livros, mas todos sabem que mesmo o fungo filosofal se propaga por esporos. Então decidiram abrir o pavimento do Gabinete do Departamento, onde se veio a encontrar um esqueleto de coruja. De acordo com o médico legista, a coruja foi morta com um golpe de livro. Há quem pense que o fungo das linhas tinha origem na coruja, mas os cépticos insistiam que a causalidade não era uma propriedade ôntica mas uma atribuição mental por inferência indutiva, e que, portanto, não aderira ao fungo filosofal nenhuma causa determinante, de modo que esse bolor imprestável era livre, responsável e imputável. O que ele fazia às linhas telefónicas não era menos estranho: as vozes das pessoas saíam com o som de balidos prolongados. Os técnicos disseram que as anomalias da linha podiam ser resolvidas com a emissão de uma frequência antimicótica. O problema desta solução é que fez desaparecer os textos de vinte e seis livros, dissertações, jornais e revistas, que não puderam ser recuperados. Os telefones, porém, não tornaram a balir.

domingo, 17 de junho de 2012

de quem mistura água na sopa

Uns metros à esquerda da entrada do Hospital da Boavista, há um portal que transporta os mais distraídos para o Maravilhoso Reino da Sopa. Quem registou o portal sofria de dislexia, porque a lenda conta que o portal devia conduzir para o Reino do Sapo e não da Sopa. O sapo fazia parte de uma provação: quem conseguisse alcançar e beijar um sapo que ia para cima de um semáforo suspenso, podia voltar à realidade. O problema é que o Reino do Sapo era exactamente igual à realidade, excepto pelo facto de ter um sapo. A visão sistemática do mesmo, em cima do semáforo da rua da Boavista, deu origem a uma condição conhecida por Síndrome de Ansiedade Anfibioscópica. Esta doença só existia mesmo no Reino do Sapo, cujo único portal funcional se encontra num lago do Jardim Botânico. O mais insidioso no Reino do Sapo é que, todo aquele que houver transposto o seu portal, pensará que apenas caiu num lago, até ao dia em que vê o sapo. O mesmo não acontece no Reino da Sopa, que foi provocado por um infeliz erro de registo tipográfico. O portal está num montinho de folhas acumulado pelo vento, que rodopia ao lado da entrada do Hospital da Boavista. Quem entrar ali, percebe que se passou para o Maravilhoso Reino da Sopa, ainda que não saiba que é este o seu nome. Para começar, as ruas têm o nome trocado, porque quem comete um erro, comete muitos, e na ementa dos restaurantes aparecem menus com uma particularidade bizarra:

MENU ESTUDANTE: Prato principal + Sapo + Bebida + Café = 5,5 euros

Seria um erro perdoável se estivesse apenas afixado num restaurante. E, claro, se não servissem, efectivamente, sapos galvanizados em sopas, com uma bateria e tudo. E parece que ninguém fazia caso disso. Outra pecularidade previsível do Maravilhoso Reino da Sopa é o cheiro pestilento a cantina que paira sobre a cidade. E as pessoas nesse reino parecem misteriosamente pálidas e deslavadas. Conta que a culpa é de quem mistura água na sopa. O céu, quando não tem nuvens, é esverdeado e por vezes podemos ver nele uma couve. A culpa disso, por sua vez, é de quem passa mal as sopas com a varinha. Ultimamente, a rua da Boavista do Maravilhoso Reino da Sopa transformou-se num pântano cheio de sapos. Não se percebe muito bem porquê, mas há quem especule que a culpa é de um coleccionador de folhas conhecido como Inácio Pedroso. Parece que andou a apanhar folhinhas do montículo do portal da Boavista e que, quando foi ao Botânico apanhar outras tantas, caiu com todas elas no lago e cruzou os reinos, provocando o caos. Apareceu no telejornal o caso dos sapos galvanizados e empreenderam-se esforços para drenar a rua da Boavista. Tudo parece ter voltado à normalidade. Porém, fica por explicar por que razão, no outro dia, eu vi alguém a trepar a um semáforo sem sapo. Olhei bem, e vi um espinafre no céu.