segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Pelo lince embalsamado

Faz parte do acervo museológico da minha velha escola uma colecção de animais embalsamados. Num dia, a meio de Março, desapareceu um pato empalhado, e as suspeitas recaíram sobre uma turma do décimo ano na qual, segundo consta, o pato-real havia sido objecto de aposta. Mas parece que a ideia consistia em roubar os olhos de vidro ao bicho e substituí-los por berlindes, e não fazê-lo desaparecer. Depois do assunto ter sido debatido em Conselho Pedagógico, que decidiu abrir um inquérito, surgiu um novo boato: o pato tinha sido comido pelo lince embalsamado. Ora, qualquer pessoa com discernimento sabe como isto é improvável. Entretanto, também desapareceram da biblioteca da escola seis grossos volumes de Anatomia Patológica. De acordo com os registos da biblioteca, a última vez que um destes volumes tinha sido consultado foi em 1928. No final de Março, o pato-real era assunto, não apenas das aulas de ornitologia, de aeromodelismo, de culinária, mas também de ontologia: “o ser do pato podia ter perdido, não a sua substância, não a sua quantidade, qualidade, relação, etc., mas somente o seu lugar original em consequência de uma apropriação por um sujeito desconhecido”, afirmou um professor de filosofia alemão, insistindo que o pato era um Ente, isto é, um pato. Mas todos acharam esta hipótese demasiado filosófica e abstracta, portanto nem sequer se considerou viável que o pato pudesse ter sido roubado. A 30 de Março apareceram, nos espelhos das casas-de-banho dos homens, inscrições a baton dizendo:

“Toda a biografia é uma patografia.”
Arthur Schopenhauer

Uma aluna declarou-se responsável por tudo o que havia sucedido a respeito do pato e queria devolvê-lo. Mas como era o primeiro de Abril, a declaração foi ignorada, apesar da seriedade da aluna, que trazia um animal embalsamado num braço e um saco com uns volumes velhos de Anatomia Patológica no outro. O mistério agravou-se quando o animal empalhado regressou à vitrina e os livros à respectiva estante. O episódio ficou conhecido entre os alunos como “A cena do pato” e entre os professores, simplesmente, “A reaparição inadvertida da ave aquática embalsamada cujo desaparecimento provisório é manifestamente atribuível a causas misteriosas.”

2 comentários:

  1. adianto também a hipótese de que a ave tenha ido arejar (pôr o ovo, na gíria). folgo, no entanto, em saber que é retornada ao cárcere, sã* e salva.

    * pergunto-me se alguém conferiu se os olhos foram ou não subtraídos e substituídos por bolas de berlim (eu recomendava cuidado com as formigas, chegado o calor).

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  2. Sempre confesso crimes no primeiro dia de abril. (quack)

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