quinta-feira, 3 de julho de 2014

uma cabeçada na nuvem

A mulher do Doutor Ilídio Fangueiro andava em cuidados, porque ele não saía do escritório há cerca de duas semanas. Quando, finalmente, o Doutor decidiu quebrar o mistério do seu isolamento, anunciou à sociedade uma descoberta extraordinária no âmbito da sua especialidade, as Teo-matemáticas especulativas. Ele afirmava, então, que os números se tornam incandescentes quando se aproximavam do infinito. Logo que vi o Doutor Fangueiro a entrar no Café do Coreto, onde se juntam todos os sábados as famílias chiques da cidade e os físicos mais narigudos da concelho, senti logo que ia haver problemas. O Fangueiro empurrou a porta do café com a barriga e alguém comentou que o Doutor era uma proeza quântica, pois os seus átomos chegavam ao Café do Coreto antes dele próprio. Ao sentar-se, ficou silêncio e uma nuvem electricamente carregada pairava sobre a cabeça do Doutor, mesmo ao lado dos físicos narigudos.
- Viva, Doutor Fangueiro! Então e esses números grandes, já emitem radiação térmica visível?
- Não tão grandes como o seu nariz, ó senhor Gaudêncio Fuças, que continua apagado como o seu cérebro.
- Pronto, pronto... mas diga-me - começou outro - se os números próximos do infinito são incandescentes, isso significa que já viu algum?
- Não - respondeu o Doutor Ilídio Fangueiro imperiosamente. - Mas não é por eu não os ter visto que não existem.
- Certamente que não é por não os ter visto que existem! - fungou o outro.
- O senhor é um ignorante.
- Eu sei. - E o físico torceu o nariz. - E o senhor também, só que não sabe. O facto de ignorarmos coisas insondáveis não justifica que acreditemos na primeira patacoada fantástica que alguém se lembra de pregar!
Furioso, o Doutor levantou-se e deu uma cabeçada na nuvem electricamente carregada. Disse um palavrão, e tropeçou numa teia de aranha, estatelando-se no chão. Um dos narigudos veio dar-lhe a mão:
- Doutor, se me mostrar um número incandescente, eu retiro o que disse.
- Não meta o nariz onde não é chamado!
- Então acha que os números e a incandescência não é assunto dos físicos?
- O Infinito não é! - exclamou.
Uma semana depois, o Doutor Ilídio Fangueiro aceitou o desafio do físico e levou-o ao circo, dizendo que lá ele poderia ver números incandescentes.
- Então o senhor é mesmo teimoso! - concluiu o Doutor Fangueiro. - Não viu que aquele leão atravessou precisamente um número incandescente?
- Ó senhor Fangueiro, o zero não podia estar mais longe do Infinito!
No dia em que fez anos, o Doutor Fangueiro preparou para si mesmo um bolo falacioso e, antes de apagar as velas, lembrou:
- É humanamente impossível apagar um número quase infinito de velas. Por isso números próximos do infinito ardem sempre.
- Parece humanamente impossível abdicar de uma teoria estúpida só porque não há meio de a refutar - narigou o físico intrometido.