sábado, 28 de dezembro de 2013

nuvens de importância

- Não, não! Nada disso! - Insistia o senhor Casimiro, enquanto fumava borboletas. - Isto - declarava, puxando do cachimbo - não é um cachimbo!
Uma rapariga interrogou-o finalmente, cruzando os braços:
- Então, perdoe-me, mas... o que é? O que é isso?
Afectando ares e nuvens de importância, o senhor Casimiro explicou:
- Isto... isto é um quadro. Uma obra prima de um pintor surrealista, só o nome do artista me escapa agora...
- Magritte? - inquiri, sem saber no que me estava a meter.
Satisfeito e convencido de que eu acreditava que ele estava a fumar uma pintura de Magritte, o senhor Casimiro começou a dizer a toda a gente que eu provara que ele tinha razão e que «até tinha adivinhado o nome do autor da pintura».
Uma semana depois, o senhor Casimiro foi constituído suspeito por causa do incêndio do museu, no qual foram consumidas pelas chamas quatro obras-primas. Interrogaram-me a respeito das borboletas que eu tinha em casa, ao que eu respondi:
- Tenho, pois, mas nunca as fumei. Aliás... - hesitei - não são borboletas. São papillons, umas folhinhas de uma droga, papilio sativa, que se atam à volta do pescoço para fazer laçarotes pomposos.
Os polícias abalaram, confusos, enquanto um deles sussurrava audivelmente para o outro:
- Eu sei que ele é doido, mas não reparaste, no dia do incêndio, que cheirava a borboleta?

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

que acompanha o marisco

Alguém comentou que havia camarões e caviar dentro das máquinas de escrever do espólio museológico da biblioteca da FLUP. Eu decidi, portanto, investigar. Queria desmentir aquilo que eu julgava ser um mito estapafúrdio. Não foi difícil chegar à primeira máquina de dactilografar mecânica, uma Messa com teclado HCESAR. Não me pareceu que cheirasse a caviar ou a marisco, mas estava eu a desmontá-la quando apareceu um bibliotecário que gentilmente me entregou um menu. Era a lista dos vinhos. «Tomo a liberdade de sugerir este Habermas, uma colheita de 1987, com uma fragrância frutada e uma textura fresca e luxuriante.» Eu torci o nariz e ele apresentou-me outro. «Um Horkheimer, de 1976, com um bouquet amadurecido e uma translucência cítrica e brilhante, que acompanha o marisco com requinte...» O senhor ia tomar fôlego para continuar, mas eu interrompi-o antes que me falasse de Adorno. «Desculpe», comecei, «só tem vinhos da escola de Frankfurt? Pensando melhor... não. Não quero vinho, quero coca-cola, por favor.» Escandalizado, o bibliotecário anuiu, deu meia volta e desapareceu atrás de uma prateleira. Para minha surpresa, quando consegui abrir a máquina, não encontrei lá dentro caviar nenhum, mas apenas pão seco embrulhado num pano vermelho com uma estrela amarela, provavelmente alusiva à quadra natalícia. Ao sair da biblioteca vi um ajuntamento de pessoas a discutir o desmantelamento recente da estátua de Lenine em Kiev. «Não tenhais medo», disse eu, «ao contrário dos mariscos, o pão não oxida as máquinas de escrever, sobretudo se estiver embrulhado numa das vossas bandeiras.» E acrescentei: «mas com pão lá dentro não ides conseguir escrever nada, e ainda bem.» Num ataque de fúria, ainda gritei por cima do ombro: «E espero que fiqueis encravados para sempre por causa de um bocado de pão saloio!»