sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Flores de molho em água benta

Numa conversa de fim-de-tarde com a dona Elvira dos Santos, acabei por descobrir que ela se sentia perseguida por orquídeas. Ao princípio, pareceu-me bizarro. Mas depois acabei por perceber a razão pela qual ela tinha abandonado as suas flores numa pia baptismal. Enquanto a dona Elvira foi atender um telefonema, eu senti uma presença invulgar na sua sala. As orquídeas estavam atrás de mim e, quando eu me voltava para trás, elas mexiam. Parece-me que elas se punham a espreitar quando eu não estava a ver. Olhei intensamente para as quatro plantas. Elas estavam paradas. Voltei-me novamente e ouvi fungar atrás de mim. Entretanto, chegou a dona Elvira. "Ela também fungam?" - perguntei-lhe. Amarela como um limão, a senhora cambaleou, sentou-se num sofá com a mão a tremer e olhou para o ar. Depois suspirou: "Sim." Ela contou que, de noite, o gira-discos começava a tocar canções do José Cid e a ventoinha do tecto dançava. As torneiras soluçavam. Até o gato, que era velho e tinha uma carecada, imitava as flores e bufava-lhes de vez em quando. "Por que razão não deita fora as plantas?", inquiri. Arregalou os olhos, pôs-me as mãos nos joelhos: "Não diga isso!", murmurou e olhou para elas com medo.
Dois dias depois, ouvi o senhor do quiosque comentar que alguém tinha deixado na igreja flores de molho em água benta, com a etiqueta comercial original onde se podia ler:

"Orquídeas Phalaenopsis Poltergeist. Encherão a sua casa de vida. Olhe por elas e elas olharão para si. Regar semanalmente."

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Dentro dos champôs

Já ouvi falar em rãs empacotadas em embalagens de couves. Mas aquele barulho da tampa das garrafas de champô não é a voz de uma rã, porque não há rãs dentro dos champôs. Eu insisto nisto: não são rãs. A Stumpfkopf lançou uma nova linha de champôs com nomes de deuses egípcios, o que em si só já é uma má ideia. Um dos champôs para cabelos oleosos chama-se "Atum". Mas a ideia mais infeliz foi dar o nome de "Amun-ra" ao champô anti-caspa. Com óbvia curiosidade, comprei o Amun-ra e por causa disso sonhei que bebia girinos. Nunca mais abri aquele champô: ele coaxa furiosamente. Anteontem limitei-me a usar sabonete "Nilo" e no dia seguinte tive uma inundação no quarto de banho e o picheleiro só apareceu ao final da tarde.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Pelo lince embalsamado

Faz parte do acervo museológico da minha velha escola uma colecção de animais embalsamados. Num dia, a meio de Março, desapareceu um pato empalhado, e as suspeitas recaíram sobre uma turma do décimo ano na qual, segundo consta, o pato-real havia sido objecto de aposta. Mas parece que a ideia consistia em roubar os olhos de vidro ao bicho e substituí-los por berlindes, e não fazê-lo desaparecer. Depois do assunto ter sido debatido em Conselho Pedagógico, que decidiu abrir um inquérito, surgiu um novo boato: o pato tinha sido comido pelo lince embalsamado. Ora, qualquer pessoa com discernimento sabe como isto é improvável. Entretanto, também desapareceram da biblioteca da escola seis grossos volumes de Anatomia Patológica. De acordo com os registos da biblioteca, a última vez que um destes volumes tinha sido consultado foi em 1928. No final de Março, o pato-real era assunto, não apenas das aulas de ornitologia, de aeromodelismo, de culinária, mas também de ontologia: “o ser do pato podia ter perdido, não a sua substância, não a sua quantidade, qualidade, relação, etc., mas somente o seu lugar original em consequência de uma apropriação por um sujeito desconhecido”, afirmou um professor de filosofia alemão, insistindo que o pato era um Ente, isto é, um pato. Mas todos acharam esta hipótese demasiado filosófica e abstracta, portanto nem sequer se considerou viável que o pato pudesse ter sido roubado. A 30 de Março apareceram, nos espelhos das casas-de-banho dos homens, inscrições a baton dizendo:

“Toda a biografia é uma patografia.”
Arthur Schopenhauer

Uma aluna declarou-se responsável por tudo o que havia sucedido a respeito do pato e queria devolvê-lo. Mas como era o primeiro de Abril, a declaração foi ignorada, apesar da seriedade da aluna, que trazia um animal embalsamado num braço e um saco com uns volumes velhos de Anatomia Patológica no outro. O mistério agravou-se quando o animal empalhado regressou à vitrina e os livros à respectiva estante. O episódio ficou conhecido entre os alunos como “A cena do pato” e entre os professores, simplesmente, “A reaparição inadvertida da ave aquática embalsamada cujo desaparecimento provisório é manifestamente atribuível a causas misteriosas.”

sábado, 14 de janeiro de 2012

A apanhar o seu sapato

Quem for a subir, atentamente, a rua Faria Guimarães, há-de reparar que há um tapete em cima de uma das árvores da calçada. Ora, tudo começou quando o senhor Frederico Mendes decidiu comprar uns sapatos que lhe ficavam grandes demais. Não foi por acaso: ele queria deixar espaço para a planta do pé crescer. O pobre senhor Frederico, porventura já ligeiramente tocado de demência, achava que todas as plantas tinham de crescer, e acreditava que a expansão da planta do metro do Porto era uma prova disso. Ele estaria longe de julgar que a estação de Santo Ovídio podia dar flor. Mas não duvidava que, apesar da sua provecta idade, os seus pés teriam de crescer. Ia ele a descer a rua, numa tarde soalheira, e tropeça numa raiz. Eu nunca vi, na rua Faria Guimarães, raízes salientes, mas é assim que me foi narrada a história. Tropeça na raiz e salta-lhe o sapato. Eu estou a imaginá-lo, vermelho de cólera e embaraço a apanhar o seu sapato e a insultar a árvore. O senhor que não gostava de perturbar os grelos das batatas, passou a ter um deleite rancoroso em incomodar aquela árvore.

Certo dia, quando desapareceu o gato da vizinha, ele assumiu a tarefa de espalhar dezasseis anúncios - no tronco da mesma árvore. Uma vez sonhou com portas cheias de narizes, e acordou de madrugada com uma ideia: pegou em todos os perfumes da sua mulher e no seu after shave, misturou-os com azeite e aguardente dentro de um pote, e regou a árvore com a mistura. Sentiu-se triunfante, achou que tinha conseguido irritar o vegetal que placidamente o observava do alto. Mas chegou a Primavera e a árvore encheu-se de folhinhas. Ela crescia, abençoada pela graça divina. O senhor Frederico ficava cada vez mais raivoso, à medida que os dias passavam. Já não dançava com a mulher no seu tapete favorito, porque achava que os seus pés não cresciam por culpa da árvore maldita. Então lembrou-se da provocação perfeita que iria coroar todas as suas pequenas vinganças e satisfazer, finalmente, toda a sua ira: dançar em cima da árvore. Içou o seu tapete favorito - roto e velho - para cima dos ramos, e no momento em que ia começar a dançar, caíram-lhe os sapatos ao chão e o pobre homem ficou pendurado por um ramo. "Estás a ver!", disse a mulher, que o observava do chão com as mãos nas ancas: "Fizestes-lhe judiarias e ela ainda te ampara." Rubicundo de fúria, o senhor Frederico exclamou: "Os meus sapatos!"

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

E era uma lâmpada

Há uns dias atrás, eu cheguei a casa, acendi as luzes, e tive a mesma sensação estranha que me arrepiava em alguns sonhos: reparei que elas não estavam propriamente acesas. A sua luz era baixinha, verde e vacilante. De repente, uma lâmpada fundiu. Havia uma janela aberta num quarto do fundo e o nevoeiro avançava para dentro de casa, transportando consigo um cheiro a pântano. Ouvi atrás de mim um tic, tic, tic. Olhei e era outra lâmpada. Mas alguma coisa nela parecia mexer-se. Aproximei-me, e estava, lá dentro, a cirandar freneticamente, um aranhiço patudo. "Detesto estes bichos", pensei. Desatarrachei a lâmpada e as outras todas voltaram à normalidade. Com a lâmpada apagada na mão, senti-me no direito de fazer perguntas. "Quem és?", inquiri. Dentro da lâmpada, a aranha mexeu e eu ouvi, baixinho:
- Sou Edison.
- Mas que disparate! - Bradei.
- Thomas Edison. - insistiu a criatura.
- Pois eu não acredito na reincarnação de génios em aranhas!
- Eu sou o génio da lâmpada e posso realizar três...
- Que tolice - interrompi - eu nem acredito nessas coisas!
Um bocado farto daquela cena, e com pouca vontade que se repetisse, dei a lâmpada ao meu vizinho, que vê mal e não reparou na aranha. Consta que a colocou na casa de banho e que funciona lindamente.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Sejam de vespas ou de estrelas

Havia um pequeno ninho de vespas no meio dos meus livros. Uma vez, eu queria alcançar a Crítica da Razão Pura que estava mesmo no meio da prateleira, e saiu uma vespa do ninho. Deu-me uma seca sobre Kant de tal modo entediante, que eu tive de esfregar a testa com vinagre e meter-me na cama. Consta que, durante o delírio, eu reclamava ser o Sujeito Transcendental. Melhorei rapidamente, mas, infelizmente, a rapidez era só um atributo da minha intuição pura a priori.
A picada permaneceu no meio da minha testa durante uns dias. Depoi vinguei-me das vespas e li-lhes um opúsculo cosmológico de Vespácio Ferrão, que dizia, entre outras coisas:

"Enquanto que os livros abrigam insectos rastejantes como os bichos da madeira, o infinito aloja os enxames galácticos mais prósperos e abundantes."

E eu acrescentei: sejam de vespas ou estrelas.

Convencidas, e com razão, da finitude do meu quarto, voaram todas pela janela em direcção ao infinito e deixaram para trás o ninho cheio de larvas que eu tive de limpar e foi um nojo.

Eu a reparar naquelas coisas

Ao contrário de todos os outros, que repousavam silenciosamente no prato, aquele cogumelo emitia um zumbido metálico. Aquilo já me estava a irritar, e estive mesmo para tirá-lo da mesa. Mas mais ninguém parecia preocupado com o barulho. Mais ninguém parecia notar. Em circunstâncias como aquela, eu por vezes perguntava-me o que fazia as pessoas tão distraídas, e sentia-me muito só por apenas eu reparar naquelas coisas. Após um curto intervalo, no qual me servi dum bocado de salada, pareceu-me que era óbvia a origem do zumbido metálico: eu tinha guardado o cogumelo no frigorífico. Era natural que ele o imitasse, fazendo aquele barulho mais próprio dos electrodomésticos do que dos fungos. Então decidi desafiar o cogumelo. "Eu sei o que tu queres", disse-lhe. Ele zumbia como se não fosse nada. "Queres ser especial. Queres ser diferente". Com isto, o barulho parou. Olhei para os outros que olhavam para mim, e pensei: "Devo ser eu que estou a ouvir coisas." Continuei a comer e, momentos depois, vi uma luz estranha na mesa. Era o cogumelo que estava a cintilar. Já muito indignado, eu bati com a mão na mesa, levantei-me e disse: "Se isto continuar assim, ponho-te no lixo, e lá tu podes brilhar e zumbir à vontade." Eu estava possesso. "E mais: se queres estragar o jantar das pessoas, por que raio não o fazes discretamente, como a maior parte dos cogumelos? Os cogumelos normais envenenam, enquanto que tu, feito estrela de cinema, gostas de brilhar... não tens vergonha dessa pretensão ridícula, ó fungo miserável?" As pessoas olhavam para mim embasbacadas, e eu senti que tinha exagerado. Peguei no cogumelo com um guardanapo de papel e meti-o no lixo.
Na noite seguinte, sonhei que havia cogumelos à mesa e que deitei alguns fora porque estavam estragados.