Eu passeava na rua de Cedofeita. Na
ausência de distracções mais cativantes, decidi escutar
atentamente os fragmentos de conversa das pessoas por quem passava.
Pelo conteúdo das conversas, tive boas razões para me alarmar, mas
mantive a calma.
O primeiro grupo foram dois jovens, um
rapaz com dread locks e brincos, de mãos dadas com uma gótica
vistosa. Ela disse-lhe: «Então o céu abriu-se e caiu de lá um
telefone....» A seguir, estavam três polícias em frente à
esquadra de Cedofeita, e um, gesticulando, começa a exclamar:
«Quando eu finalmente atendi a maldita chamada, o chefe disse que
recolhesse as nuvens...» Logo depois, vejo um homem de boné a
descrever uma curvatura com o braço, dizendo «...porque o arco-íris
estava torto...» Mas o mais estranho foi ouvir uma freira a murmurar
para a outra: «A Criação comprometida...» E a seguir ouço as
palavras, vindas de dentro da Óptica de Cedofeita: «...por um erro
de refracção...» Ao longe, vejo uma mulher a barafustar ao
telefone, com o dedo no ar: «Ninguém pode saber! Quem souber...»
E, parado junto a uma porta, estava um homem a apontar com o dedo
para a planta de uma casa: «Tem de ser eliminado.»
Habitualmente, os fragmentos que
apanhamos na rua são desconexos. Mas estes comportavam uma mensagem
muito consistente: «O céu abriu-se. Caiu de lá um telefone e,
quando eu atendi a maldita chamada, o chefe disse-me que recolhesse
as nuvens, porque o arco-íris estava torto. A Criação comprometida
por um erro de refracção! Ninguém pode saber! Quem souber tem de
ser eliminado.»
Eu desesperei. Fui para casa e, qual o
meu espanto, quando vejo ursinhos carinhosos a escorregar por um
arco-íris através da minha janela do quarto. «Vieram matar-me!»,
pensei, em pânico absoluto. Fugi para dentro do quarto de banho,
tranquei a porta e esperei. O que é que eu podia fazer? Foi então
que me lembrei que só Newton me podia salvar. Rezei pela sua
aparição, mas, desgraçadamente, apareceu-me Leibniz. «Se não me
esperavas, não falasses no criador do cálculo infinitesimal!» Tive
de aturar o Leibniz e suas Mónadas até ter uma ideia. Peguei nas
Mónadas de Leibniz, ensaboei-as e atirei-as todas aos ursinhos, que
escorregaram nelas e se espatifaram no chão. Então eu fugi da
Brigada do Arco-Íris e encontrei um telefone a tocar, pendurado no
ramo de uma árvore. Atendi e uma voz disse: «Come muito queijo!»
Assim fiz. Fiz de conta que, graças à aplicação da duvidosa
sabedoria popular, me esqueci de todo o episódio. Mas, quando eles
souberem que ainda me lembro de tudo, terei mais ursinhos carinhosos
a tentar matar-me, sem a salvação de Newton, para explicar que o
mistério do arco-íris torto não é um erro da Criação.