terça-feira, 23 de outubro de 2012

espirrava na série de Fibonacci

Dois velhotes que estavam a jogar cartas num banco da praça Carlos Alberto, ficaram a olhar para mim, quando eu agarrei num cão e lhe perguntei se ele sabia código morse.

Eles não sabiam que foi com uma boa razão que eu o fiz. No fim da minha rua costuma estar um cão sem cauda. É branco às pintas e gosta de atravessar de um lado para o outro da passadeira. Também tem outro hábito intrigante: por vezes, encontro-o, imóvel, a olhar para o vidro do talho. Reparei, no entanto, que não é por gula da carne que ali se encontra exposta. Cheguei à conclusão errada que era porque contemplava o seu reflexo, perplexo de estupidez. "Estupidez", pensei eu. E pensei mal. Um dia, decidi seguir o cão pela rua fora e vi-o a dar voltas e a sentar-se aproximadamente de dez em dez metros. "Que cão estúpido!", julguei eu, antes de perceber que ele dava voltas em sequências de números primos. Logo que percebi a sequência, prestei mais atenção, e percebi também que ele espirrava uma vez, depois outra vez, depois duas vezes seguidas, depois três, cinco, oito. Sim, claro, espirrava na série de Fibonacci. De repente, o cão começou a ladrar histericamente e eu reparei que era, provavelmente, por ter passado por outro talho. Pôs-se a olhar fixamente para dentro, através do vidro. Se não fosse um cão, eu diria que tinha uma expressão de choque e consternação, e não de gula. Depois, inquieto, contemplava o reflexo justaposto e cheirava o vidro desesperadamente. No entanto, algo de incrível sucedeu quando chegámos à praça Carlos Alberto. Ele começa a arrancar, com a boca, as pedras da calçada do meio da praça. Quando percebi que ele as tinha arrancado num padrão de pentagrama, fui ter com o cão e perguntei-lhe se sabia código morse. Ele imediatamente ladrou, em código morse: «Socorro, sou Pitágoras».

Eu fui para casa a meditar no meu risco em acreditar, como os pitagóricos, na transmigração das almas. Passei por uma livraria religiosa de Cedofeita, que tinha na montra um livro de auto-ajuda com o título "Acredite, e acontecerá!" Comprei o livro, com a intenção exclusiva de não acreditar na sua premissa principal. A partir daí, achei que podia continuar a acreditar na trasmigração das almas, sem risco de ir parar à montra de um talho qualquer numa vida futura, tragicamente contemplada por um cão genial.